terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Importado


Encarar a plateia de frente, sozinho, sem ninguém ao seu lado para dividir a cumplicidade ou para ajuda-lo num momento de sufoco não é tarefa para qualquer ator. Já tive a oportunidade de experimentar o formato monólogo quando fiz “O Contrabaixo”. Foi uma experiência assustadora a princípio, mas depois, como o texto já fazia parte de mim, ficou muito divertido.  Atores gostam de monólogos. É um grande exercício para testarmos e aprimorarmos o nosso trabalho. Também estabelece uma ligação muito especial com a plateia, especialmente se for num teatro de bolso ou num teatro de arena, com o público ali quase encostado em você. Por estar em cartaz na campanha não estou tendo oportunidade de ver muitas coisas, mas consegui ver dois monólogos muito interessantes. Ciclos e O Importado.  O segundo atinge melhor os objetivos a que se propõe.

O Importado é um espetáculo articulado em cima de dois momentos distintos que são apresentados duas vezes cada, mas com mudanças de intensidade em cada momento. Como se fossem dois atos.  Num primeiro momento, o melhor em minha opinião, talvez nem poderia ser chamado teatro. Odilon Esteves, o ator e proponente do projeto aparece em cena e sem pisar efetivamente no palco, falando em um microfone instalado ao lado da ribalta, lê para a plateia uma carta de seu próprio punho. Ele nos explica o que o levou a propor o trabalho, quais foram suas premissas. Descobrimos que a temática inicial é a loucura e, como estamos vivendo tempos pouco normais para dizer o mínimo, o reconhecimento das situações que ele expõe ao ler sua carta nos torna seus cúmplices imediatos. É um momento lindo. Odilon Esteves é um ator que, além do talento, é um dos artistas mais carismáticos da cidade. Fruto de seu trabalho com o grupo Luna Lunera e também no cinema. 

O fato é que todo mundo gosta do Odilon. A busca da loucura o fez chegar ao conto “O Importado vermelho de Noé”, do escritor mineiro radicado em São Paulo André Sant’Anna, filho do também escritor Sérgio Sant’Anna, publicado em 1999. Então Odilon vai para o palco e trata de dar vida a estranha personagem. Uma personagem que tem pouco mais que meia dúzia de frases feitas repetidas ad nauseum que chegam a cansar a plateia. A repetição é um efeito que busca enfatizar o que a princípio pode parecer banal, irrelevante, sem sentido até, mas possui um efeito comunicativo as vezes bastante eficaz. O incomodo que provoca é prova de que passamos a ver aquilo que é dito repetidamente de outra maneira, descobrindo sentidos que até então permaneciam ocultos e essa descoberta (da nossa própria ignorância sobre o fato) é muitas vezes irritante.

 O conto pode ter passado batido quando foi escrito (talvez nem tanto ou não teria entrado na antologia dos cem melhores contos brasileiros do século XX). Pelo menos o discurso da personagem pode não ter encontrado eco quando foi a público. Afinal ainda vivíamos os anos FHC e a direita, refestelada com os frutos da sanha neoliberal, não tinha coragem de dizer abertamente o que pensava. Num tom de confissão, isolado em seu carro preso no trânsito brutal de São Paulo, a personagem dá voz ao que traz dentro de seu peito e o que ele traz não é nada legal, nada politicamente correto, especialmente quando se refere as minorias, aos negros, ao que possa ser genuinamente nacional. A personagem quer ir para Nova York onde estaria chovendo dinheiro, mas está presa em seu carro importado vermelho na marginal Tietê paralisada pela chuva (de água) que cai sobre a São Paulo administrada por um prefeito negro. Uma personagem típica da era neoliberal (Eu tenho, eu quero, eu posso, será meu mesmo que o mundo ao meu redor desmorone).

Se o texto pode ter provocado algum tipo de repulsa quando foi publicado, nos dias de imbecilidade coletiva em que vivemos, soa perfeitamente “normal” e é só lembrarmos das postagens que ganharam as redes sociais nos últimos anos (e dos quais Odilon tirou proveito para sua montagem) para constatar a estranha e incômoda atualidade do texto. Então, num terceiro momento do espetáculo, Odilon volta a ler sua carta para a plateia e assim descobrimos que seu processo criativo que havia começado por uma investigação sobre a loucura, alcançou seu verdadeiro objetivo que era falar do racismo. O espetáculo faz então um paralelo entre o racismo da personagem do conto e o racismo nosso de cada de dia. E esse racismo nosso está na naturalização de atitudes, de padrões sociais que julgávamos aceitáveis até que os anos Lula/Dilma mostraram que eles são na verdade a própria raiz de nossa constituição como povo. 

Para usar as palavras de Jessé de Souza, a escravidão é o nosso pior legado, o que mais marcas deixou em nosso ser brasileiro e que até hoje nos assombram. E a eleição de Bolsonaro está aí para prova-lo. Odilon nos traz para a essa reflexão sobre o racismo sua própria vida de branco privilegiado, costurando memórias de sua infância/adolescência, de uma amiga negra de infância que depois foi trabalhar em sua casa. É para mim o grande momento do espetáculo e nem precisaria ter uma quarta parte em que o ator retorna com mais intensidade (e insanidade) ao seu Noé perdido na água suja de São Paulo. Mas é preciso fazer com que a plateia se incomode e saia pensando no espetáculo e, nesse sentido, foi uma escolha muito feliz porque é isso que “O Importado” faz.  

Para a premiação do Sinparc que deverá acontecer ainda no primeiro semestre, Odilon é certamente o favorito para o prêmio de Melhor ator. E se a premiação o confirmar será merecido.


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Peixes no aquário do FIT


“Os peixinhos não estão na minha cabeça, doutor. Estão em toda em toda parte”.

E então eu fechei minha participação no FIT com chave de ouro. Peixes foi o último espetáculo que vi, no Teatro Raul Belém Machado, lá no Alípio de Melo e não me decepcionou. Já falei aqui de certa implicância minha com espetáculos engajados, que tentam falar abertamente de política e de questões sociais. Tenho algumas dificuldades com a produção local quando tocam nesse ponto. Sou um amante da metáfora e na maioria das vezes vejo o discurso se sobrepondo a encenação e gerando um espetáculo fraco teatralmente falando. Acho as vezes que a arte tem que mostrar não mostrando, dizer não dizendo ou pelo menos não dizendo diretamente. Mas confesso que essa edição do FIT me fez ver as coisas por um outro ângulo e todos os espetáculos que vi me trouxeram algo de positivo tanto no nível do discurso quanto no da encenação. Há também uma máxima que diz que a beleza está na simplicidade. A doçura de um sorriso de criança pode encerrar tanta ou mais beleza que as pinturas da Capela Sistina. 

Difícil conciliar isso com minha fé na metáfora? Nem tanto. A arte é também irmã do espanto, tal como a religião e a filosofia. Não é que eu não fique espantado com a beleza barroca de uma igreja de Ouro Preto ou de Salvador, por exemplo, ou com um espetáculo de Gabriel Vilela dos velhos tempos. Claro que me espanto. Me espanto e me embriago (a embriaguez também é prima irmã da arte). Mas me espanta também a simplicidade de um espetáculo que não tem muita coisa em cena além de uma mesa, duas cadeiras, um ator convidado da plateia para fazer a função de médico ouvinte e de uma atriz. O corpo e a voz de uma atriz a preencher com maestria todo o palco. O corpo, a voz, a inteligência e o carisma de uma atriz... Uma ATRIZ como Ana Régis no palco. Uma atriz que diz um texto poderoso de sua própria autoria. Um texto onde costura três histórias de abuso e violência contra mulheres.

E o espetáculo nasceu quase que por acaso. Ana começou a pesquisar a questão da violência doméstica por outro motivo e depois se viu com um material que poderia dar um espetáculo. Para nossa felicidade ela abraçou a ideia e nos deu Peixes, uma pérola para encerrar um belo festival.E Ana cumpre também uma função essencial na arte de nosso tempo. Ela dá voz aos que não tem voz. Sua personagem, Cláudia, é uma professora que está em um manicômio judiciário para onde foi parar depois de ter esfaqueado o marido. Em aproximadamente uma hora ela nos dá um recado que toca lá no fundo. A violência doméstica está mais presente em nossa vida do que imaginamos. Ela pode estar ali na esquina, na porta ao lado, dentro de nossas próprias casas. Ela se manifesta de diversas maneiras, em diversas fases da vida.  

A personagem Cláudia nos mostra isso. A violência está nas tentativas de abuso por parte de um tio na infância, os peixinhos que beliscavam seu corpo quando ela estava na água com ele, a tentativa de penetração de sua vagina pueril. Mas está também no silêncio e na conivência dos adultos que deveriam proteger a criança incapaz ou no discurso cotidiano de um marido incapaz de ter palavras melhores para dizer a uma esposa do que "Porca, gorda, burra, você já viu homem dar aulas para crianças? Isso é coisa pra mulher". Quantas notícias como essa já não ouvimos? É só abrir os jornais e não só os da imprensa popular.  Ana Régis constrói uma bela caracterização. Seu corpo é o corpo de uma mulher ainda em estado de choque não só pelo que fez, mas pelo que lembra que viveu. Um estado de choque constante e que se manifesta na forma como ela manipula também seu olhar,  sua voz, na forma como caminha nervosa e meio sem rumo pelo palco ou como encadeia ações simples como, por exemplo, por duas vezes, vai até a mesa para beber água e fica olhando dentro do copo “para ver se tem bicho”. Familiar? Quantas vezes já não ouvimos isso? 

Uma fala ouvida na cozinha de nossa casa e que, no entanto, nos revela tanta coisa. Como também sua fala que encerra o espetáculo. Mais ou menos assim: “o senhor está enganado, doutor. Os peixinhos não estão dentro de minha cabeça. Estão em toda parte”. A violência contra a mulher não pode ser naturalizada como muita gente satisfeita com o status quo gostaria que fosse. É preciso falar e denunciar. E essa fala nos toca e como toca. Na apresentação do último domingo uma moça se levantou lá pela metade do espetáculo e mal deu conta de fechar a porta do teatro ao sair, de tão transtornada que estava.E por coincidência, para nos lembrar que as palavras ditas no espetáculo não foram vãs, na segunda feira entro no site do jornal “O Tempo” e a matéria de capa era exatamente sobre a violência contra a mulher. Quase 200 assassinatos em Minas até o mês de setembro. Para cada ação na Justiça por crime de trânsito, sete outras ações por crimes contra as mulheres.

Com Peixes, Ana Régis ganhou os prêmios Copasa/Sinpar/2018 nas categorias de melhor atriz e melhor texto inédito, além de ter concorrido ao prêmio de melhor espetáculo adulto. Premiação mais que merecida.

Um espetáculo que deve ser visto por todo mundo, que deve ser mostrado em todos os cantos da cidade, do estado, do país. Vida longa à Peixes.


terça-feira, 25 de setembro de 2018

FIT EXPERIÊNCIAS


Eve. 


No FIT passado não consegui ver Jo Clifford. No dia em que fui ver Jesus, Rainha do Céu, ela passou mal poucos minutos depois de iniciado o espetáculo. Ela voltou e fui vê-la de novo. Ao chegar ao teatro um inusitado atraso de uma hora para começar o espetáculo me fez temer novamente pela saúde da atriz. Mas não.
  
Pois é, o que é o teatro? Há muita gente se perguntando, há muita gente tentando responder e afinal encontrar a resposta é talvez matar a nossa própria motivação para continuar seguindo adiante. Jo Clifford nos dá uma pérola do que ela entende por teatro. Um espetáculo simples, ela quase o tempo todo sentada, imagens de arquivo pontuadas por uma bela música e ela ali, nos fazendo cúmplices de sua vida, nos trazendo para junto dela com sua história. Uma história que poderia ser de qualquer um. Simples assim. Sem ressentimentos, sem raiva. Ela soube desde cedo que era mulher mesmo sendo homem. Sofreu por conta disso, mas também riu, amou, se casou, teve filhas, netos  e 55 anos de travessia para chegar onde ela sempre soube que esteve. Uma lição de vida. 

Um espetáculo que esbanja humanismo. Lindo. Saí engasgado.Aliás não só eu. Vi muita gente com os olhos vermelhos no final. Meus amigos Alex e Jonathan que estavam comigo também saíram assim como eu: engasgado. A arte serve para isso mesmo. E a própria Jo Clifford nos diz isso no programa do espetáculo. Mais ou menos assim: "lá pelos meus 40 anos apareceu o filme "Traídos pelo Desejo" então, pela primeira vez em minha vida eu vi uma personagem trans sendo feita por uma atriz trans e retratada como uma pessoa que vale a pena amar." Um filme mudou a vida de Jo como seus espetáculos devem mudar a vida de muita gente. Eis a grande força da arte. Simples assim.

E ainda tive o prazer de tietá-la quando ela apareceu para jantar na Cantina do Lucas. 
Jo Clifford merece.

Da Escócia para Portugal


Libertação, produção de André Amálio/Hotel Europa. Estamos aqui diante de um autêntico exemplo do teatro documental. Não há personagens, há os atores que evocam suas memórias, suas histórias, seus corpos para encarnar passos marcantes do processo de descolonização da África portuguesa. Os três atores que estão em cena são frutos desse passado, dessas memórias. O pai de André, o proponente do projeto, foi policial em Moçambique. Os pais de Carla são de Cabo Verde e os de Ricardo da Guiné Bissau. Os três encarnam diversos personagens do longo e doloroso processo de independência das colônias portuguesas na África. Uma grande e envolvente aula de história. Um espetáculo que não tem medo de ser didático e que nos aponta para coisas fundamentais. Primeiro é que a história tem que ser remexida e contada por outros pontos de vista. Lembrar para não esquecer. 

Segundo que é necessário denunciar os crimes cometidos pela civilização europeia contra a África, crimes que não foram julgados e cujos criminosos escaparam ilesos. O último ditador português, Marcelo Caetano, fugiu para o Brasil depois de ter sido derrubado pela Revolução dos Cravos. E o Brasil dos ditadores militares o aceitou de bom grado. Uma lição para quem acha que o Brasil não teve ditadura e que os negros vieram para o Brasil como escravos única e exclusivamente pelas mãos de outros negros que os vendiam na África. Sei que há pessoas que não gostaram, que o acharam pouco teatral e muito discursivo. Sim, pode ser. O espetáculo tem mesmo um ar de defesa de tese. Mas é uma defesa de tese feita sem concessões, sem subterfúgios. Eles estão ali para isso e mostram o que pensam com coragem.

De Portugal para Ruanda


Unwanted da Compagnie Kadidi, da França/Ruanda é sem dúvida um soco no estômago.

Uma amiga que me acompanhou me disse mais tarde que não saiu com pouco mais de quinze minutos em consideração a mim. Marília, minha amiga, é psicóloga há quase trinta anos. Ouvir problemas de centenas de pacientes homens e mulheres não é problema para ela, mas porque com pouco mais de quinze minutos ela se sentiu afogada por tudo aquilo mostrado no palco? Muito real e muito próximo. Em tradução literal Unwanted  significa “não procurado, indesejado”. O que é indesejado? Acostumados ao mar de insanidades, bobagens e fake News divulgados pelas redes sociais nos esquecemos dos crimes que acontecem ali, na esquina mesmo de nossa casa. No caso a esquina de nossa casa é a África e mais precisamente Ruanda. Encravado ali entre Uganda, o Congo e o Burundi, esse pequeno país da África central foi palco de um dos mais terríveis genocídios do século passado. As disputas tribais entre hutus e tutsis levaram ao massacre de mais de 800 mil pessoas em cem dias. Mas quem se importa? 

No mundo de hoje um massacre é apenas mais uma estatística para ser negada anos depois por políticos sem escrúpulos e aceita por eleitores com preguiça de pensar. Odiar o outro é sempre mais fácil. Jogar em suas costas as culpas pelos males do mundo sempre foi mais cômodo. Assim é a história. Essa é a humanidade. E é por isso que trabalhos como Unwanted causam polêmica e incômodo ao ponto de algumas pessoas se levantarem e saírem no meio da apresentação. Talvez habituados a uma arte mais digestiva, que não nos oferece riscos, nos esquecemos que a função da verdadeira arte é colocar diante de nós um espelho e o problema é que não gostamos de nos ver refletidos lá. E é isso que a Compagnie Kadidi faz com maestria. 

Em cena, duas artistas, atrizes, cantores, performers. Não estão nos contanto uma história. Não há linearidade narrativa. Através do canto e do corpo tendo ao fundo narrativas de mulheres estupradas durante os dias de genocídio, o drama das mulheres de Ruanda nos chega pelo sensorial. São sons e imagens, gestos quebrados e quedas e cartazes rasgados e música e canto enquanto ouvimos o implacável depoimento das vítimas, três, quatro, cinco vozes que falam por todas as outras. As milhares de outras. E o que dizer dos indesejados filhos nascidos de tal violência, os unwanted do título? Ao final a dura lembrança do que acontece hoje, debaixo de nossos narizes, com a Síria e o depoimento de uma das vítimas que depois de tudo ainda é capaz de rir, o que significa que ainda é capaz de perdoar, de seguir em frente. O espetáculo foi aplaudido ininterruptamente por quase dez minutos. Golaço do FIT.

Mas muito do incomodo provocado por Unwanted talvez tenha se dado em função do alerta que desperta em corações apreensivos com o destino do país. Numa eleição marcada pela ilegalidade (afinal o que seria o candidato favorito é, queiramos ou não um preso político) e em que a principal estrela do pleito é um candidato admirador das trevas, assistir a Unwanted talvez tenha nos trazido um triste prenúncio. O prenúncio de que se não agirmos, se não lutarmos com todas as armas que temos contra o reinado de ódio destilado nesses anos todos, Ruanda será também aqui.

domingo, 23 de setembro de 2018

O FIT não decepcionou


Escrevo estas linhas no penúltimo dia do Festival de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte. Para mim ainda falta assistir mais um espetáculo, Peixes, que verei hoje à tarde.

Até aqui assisti a sete espetáculos. Esse ano não fui capaz de fazer a maratona que fazia em edições passadas. Problemas de agenda e ânimo mesmo. Mas confesso que as sete produções que vi foram satisfatórias. Saí emocionado de umas, engasgado de outras, pensando em todas. Quando foi anunciada a proposta curatorial fiquei um pouco apreensivo, temeroso até. Pensei que o FIT ia ficar restrito a um pequeno grupo, espetáculos para guetos. Especialmente quando foi divulgada a lista dos espetáculos locais. Apreensão que aumentou depois da decepcionante abertura. Mas o que vi depois mudou meu ponto de vista. Vi espetáculos fortes no radicalismo de sua proposta e discurso, espetáculos para pessoas que pensam e que desejam um mundo melhor, mais humano. Humanismo. Esta foi para mim a tônica do festival. Empatia pelo sofrimento humano, pelos dilemas de nossa existência em um mundo cada vez mais patético.

Depois das boas impressões causadas por Black Off e A Invenção do Nordeste, vi por indicação de meu amigo Guto Muniz ao simpático Simon, El Topo, do Teatro de La Plaza, do Peru. Um espetáculo de bonecos destinado ao público infantil (nem tanto) em que a toupeira Simon tem problemas com as pressões sociais. Ele é uma toupeira que tem dificuldades em assimilar coisas que as toupeiras fazem como caçar minhocas. A falta de jeito com a coisa faz com que ele se sinta repudiado pelo grupo que o considera um “veadinho”. Situação muito corriqueira na vida de milhões de pessoas. Eu mesmo tive muitas dificuldades na minha infância por não gostar de jogar futebol, o que na economia sexual da criança brasileira de minha época era sinal de pouca masculinidade. Incrível eu gostar hoje de futebol como torcedor e ser fanático pelo Galo...enfim. Simon, El Topo é um espetáculo que fala desse dilema que desemboca na solidão da personagem principal. 

Na sua solidão ele encontra o amor de outra toupeira macho. Mas isso é dito de uma forma lúdica (afinal, estamos falando para crianças) e episódica. A relação não se desenvolve e Raul, a toupeira amiga de Simon, só aparece na cena final da festa de aniversário como mais um convidado. Pronto. Está dado o recado. O único senão é com relação a dramaturgia. Penso que a ela poderia ter sido mais ousada. No decorrer da história há uma tempestade que inunda tudo e Simon aparece como o salvador de seu grupo conduzindo-os para uma toca mais segura, a toca onde ele se escondia quando estava infeliz. Fico pensando... É necessário ele se transformar em herói para ser aceito pelo grupo? Como não sei qual é a situação em que o espetáculo foi concebido (sei nada sobre a questão sexual no Peru), não posso julgar, mas fiquei esperando um pouquinho mais da história.

Donde Viven Los Bárbaros da Compañia Bonobo do Chile foi outra boa surpresa. Chilenos e argentinos sempre trazem bons espetáculo para o FIT. “Viagem ao Centro da Terra”, do La Tropa e “Maratona”, do Sombrero Verde, foram sem dúvida dois grandes momentos da história do FIT. Donde Viven Los Bárbaros não deixa por menos. Espetáculo dividido em duas partes (para mim poderia ter sido só uma, mas isso é um desejo meu), na primeira, num passado clássico (Grécia), um homem é mandado para os limites da civilização, para a terra dos bárbaros, mas ele não encontra as bestas que julgava encontrar lá. Os bárbaros, afinal são iguais a nós. A montagem dá um salto e aterrissa no Chile dos tempos atuais, para uma reunião entre três primos. Num texto que lembra as melhores obras de Eric Emmanuel Schimit, a progressão do enredo nos traz inusitadas surpresas. 

Os atos impensados das personagens os levam a situações limite onde fraquezas, medos, anseios e ressentimentos são expostos. Ao final, o que sobra é uma inversão da posição sartreana de que o “inferno são os outros”. Não. O inferno sou eu mesmo. Os bárbaros não moram além da fronteira, mas dentro de mim. Uma bela metáfora para o mundo atual. Além dessa preciosidade de texto o que salta aos olhos de nossos irmãos de continente é o brilho das interpretações. Sou um grande admirador dos argentinos. Gosto de seu rigor, de sua precisão. Os chilenos não ficam atrás. A interpretação precisa. Texto bem falado, presença cênica, nenhum um gesto a mais ou a menos. Muito bom.

Hoje fico por aqui. Postarei os outros comentários nos próximos dias.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

FIT 2


Black off e A Invenção do Nordeste foram os espetáculos do FIT que vi até agora e achei um acerto da curadoria.

Black off é um trabalho da artista Ntando Cele de Zimbábue que se apresenta com sua banda de suíços brancos, conforme a definição dada pela sua personagem Bianca White logo no começo do espetáculo. Um espetáculo incômodo. Acostumados a rir do black face que até bem pouco tempo era naturalizado como expressão de pilhéria, é difícil para nós brancos não sentirmos um incômodo quando a coisa se volta contra o conforto de nossa “branquitude”. Aqui temos uma branca maluca, uma White face, uma irmã “espiritual da Xuxa” a falar de um branqueamento total do mundo, de expulsão de nossa negritude interior,absurdos ditos de uma forma leve e espirituosa que nos fazem rir...De nervoso. 
O espetáculo é dividido em duas partes. A primeira é uma espécie de stand-up em que Ntando Cele com muita graça e ironia nos faz provar um pouco do nosso próprio veneno, de nossa falsa consciência de que ser branco bastaria. 

E o veneno surte efeito quando vemos, no meio do espetáculo, uma senhora branca se levantar e sair resmungando. A primeira parte termina com a desconstrução de Bianca White. Sentada defronte ao espelho com uma câmera de vídeo a projetar seus gestos em uma tela, a atriz tira a maquiagem e nos mostra que por trás da caricatura há um ser humano, uma mulher negra que usou a máscara para denunciar os naturalizados preconceitos nossos de cada dia. Na segunda parte, Ntando vem de cara limpa e depois de uma breve cena em que ironiza os estereótipos da África exótica e selvagem, canta uma bela canção acompanhada pela banda enquanto o vídeo de uma performance em que ela aparece com o rosto todo amarrado por uma corda é mostrado. Uma cena linda. Para mim o espetáculo deveria acabar ali. A seguir, com outro figurino ela retorna e dá um pequeno show onde canta quatro músicas. Achei o final um pouco reiterativo. Ela canta muito bem, a banda é boa, as letras são de protesto, mas sobrou um pouco. A galera se levantou em êxtase. Ponto para o FIT.

O que é ser nordestino?

Existe um rótulo que nos colocam ao nascermos para nos identificar como mineiros, gaúchos, cariocas ou nordestinos?

Ser nordestino é o quê? Falar de um jeito diferente? Todos nós falamos diferente em cada região de Minas. É só viajar pelo estado. Fala-se de uma forma em Januária e de outra em Juiz de Fora. De um modo peculiar em Varginha e outro em BH. E não somos todos mineiros? O Grupo Carmin, do Rio Grande do Norte traz de forma divertida essa questão da identidade nordestina. Em cena dois atores que disputam o papel em um trabalho para a televisão (Globo) e um preparador de elenco. Eles irão disputar o papel do Padre Cícero e precisam mostrar a cor local. No trabalho de preparação que leva seis semanas eles discutem os vários aspectos do ser nordestino, a origem do rótulo que veio da imprensa do século XIX depois da grande seca de 1877. O trabalho diz muito sobre o que pensamos sobre nós mesmos e, para nós atores, diz muito sobre como encaramos os desafios que nos são colocados quando precisamos dizer algo sobre nós mesmos.
A questão da identidade, sempre atual, é trazida à tona num momento em que os próprios destinos da civilização no Brasil são colocados em cheque e, no meio de um bizarro processo eleitoral, a decisão sobre o futuro da sociedade brasileira pode ser decidida por um embate entre o norte e o sul/sudeste. Ainda sobre a identidade: nós somos o que pensamos que somos ou o que pensam que somos? É claro que no final um galã global é escolhido para o papel e os dois esforçados atores são convidados para papéis menores em outro trabalho. Um como porteiro em um edifício e outro como operário da construção civil, os papéis que a sociedade branca, letrada e classe média do sudeste/sul gosta de designar para os nordestinos (além do exotismo para turista). Com graça e humor o Grupo Carmin põe vários dedos na ferida de nossa consciência sulista, a começar pelo papel aniquilador de identidades assumido pelos meios de comunicação. Outro ponto para o FIT.

domingo, 16 de setembro de 2018

Atendendo a pedidos


Atendendo a pedidos não está no FIT, mas corajosamente está em temporada durante a realização do FIT. Estreou na Sala Júlio Mackenzie no Sesc Palladium no último dia 14 e depois se apresentará em três locais diferentes nas próximas três semanas.  Mas é um espetáculo que poderia perfeitamente compor a grade de programação do grande festival. Tanto pelo que ele fala quanto pela forma como fala.
O espetáculo é fruto da parceria entre o ator Robson Vieira e o diretor Lenine Martins. Há outras duas parcerias que garantem o bom resultado do espetáculo, Javier Galindo, na trilha musical e Denner Moisés que divide a iluminação junto com a dupla ator/diretor. O trabalho faz parte de um projeto maior do Grupo Teatro Invertido que já estreou outros dois solos.

Conheço Robson Vieira há mais de vinte anos e já trabalhamos juntos em três espetáculos: A Farsa da Boa Preguiça (pelo qual ganhou o Prêmio Usiminas/Sinparc de ator revelação), Tribobó City e Retrato Falado. Atendendo a Pedidos é seguramente um de seus melhores trabalhos. Fruto de uma investigação corporal e temática inteligente. Robson Vieira é um ator que sabe muito bem explorar as habilidades de seu corpo, mas seu trabalho vai muito além de uma mera exploração. Há espetáculos em que os atores exibem suas habilidades corporais sem que essa exibição traga necessariamente algo de significativo ao que estamos assistindo.  Não é o caso de Atendendo a Pedidos onde o ator coloca com verdade seu corpo a serviço da encenação, em que o trabalho da dramaturgia e da direção só ganham verdadeiro sentido quando conectado a presença do ator que os traduz.

O espetáculo é composto por cinco quadros que, segundo o ator, são apresentados de forma aleatória a cada apresentação de modo que um espetáculo nunca é igual ao outro. Na apresentação que vi fui capturado de imediato pelo quadro que fala sobre o acidente de Mariana. Esse acidente que continua como uma ferida aberta, não purgada pela nossa confusa sociedade. O quadro sobre a lama de Mariana me fez pensar no que é fazer teatro político hoje. Já havia manifestado essa minha questão com o próprio Robson em uma mesa de bar. Há muitos espetáculos que tentam ser políticos, trazer a discussão política para o palco. Acho importante, necessário, urgente. A questão é a forma. Como falar o que queremos falar. Há experiências recentes (premiadas até) que valorizam em excesso o discurso em detrimento da forma. O resultado é um espetáculo que parece muito mais uma aula ou um comício. Atendendo a Pedidos não cai nessa armadilha. O que diz é sério, mas também é engraçado. A reflexão não precisa ser sisuda.

Destaque também para a excelente trilha musical e para a luz. Não há cenário, mas objetos cênicos. O figurino é simples e muitas vezes o que vemos é o corpo nu do ator. Um corpo que não tem vergonha, não tem medo de dizer o que precisa ser dito.

Depois do Sesc Palladium o espetáculo será apresentado na Casa Circo Gamarra, na Gruta e por fim no Teatro de Bolso do Sesiminas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Fit


Acompanho o FIT desde a primeira edição. Ainda estava no Cefar, no último ano, quando BH foi premiada com a sua primeira edição. Sempre fui público fiel do festival que sempre defendi com unhas e dentes. Quando o falecido Lacerda quis acabar com ele estive na porta da Fundação Municipal de Cultura com outros artistas para protestar. Não ganhei os louros da briga. Já me disseram que tenho dificuldades com a inteligência emocional. Na verdade, tenho dificuldade com a política, com a politicagem, com o marketing. Enfim.
Como é um blog posso misturar lembranças e sentimentos às tentativas de reflexão que apresento a um possível leitor.

Muito difícil esquecer a abertura do primeiro FIT. Foi o primeiro festival internacional de teatro que vimos na cidade. Era uma tarde de sábado e estávamos na entrada do Parque Municipal, ali na Afonso Pena e de repente artistas com roupas e corpos pintados dependurados nas árvores começaram a vir para o chão e o que se seguiu foi aquela orgia de seguir o grupo francês Generique Vapeur (desculpem a falta dos acentos nas palavras francesas). Foi uma abertura tão marcante que três anos depois ela foi repetida no FIT do centenário da cidade. O impacto de um “espetáculo” tão simples foi a liberdade que nos proporcionou de seguir como loucos aquele grupo (ainda não tínhamos o carnaval de blocos e trios elétricos por aqui) e a felicidade de ver aqueles gringos loucos escalarem prédios e marquises resignificando espaços públicos para os quais dávamos pouca ou nenhuma importância. O Generique Vapeur envolveu a galera e eu nunca havia sentido aquele tipo de emoção em uma manifestação artística. Lembranças.
E evoco essas lembranças para falar do FIT de 2018 cuja abertura, decepcionante, foi feita ontem.

Eu entendo que o momento político nacional exige uma tomada de posição, um engajamento de todos os setores esclarecidos e por esclarecer da sociedade. Sei que os artistas tem um papel fundamental nessa empreitada e que há uma pressão muito forte por uma arte engajada. O problema do engajamento da arte é de o discurso político se sobrepor ao artístico o que no final das contas acaba diluindo um e outro. Ambos acabam perdendo a profundidade que se deseja.  Uma conversa antiga, mas que continua atual, cada vez mais atual. Não vou me estender aqui porque ainda não vi nenhum dos espetáculos programados. Espero voltar mais tarde.

Estava dizendo que entendo que o momento político demande uma tomada de posição. Entendo que há uma curadoria que foi escolhida através de uma seleção pública. Mas isso não me faz desculpá-la pelas escolhas. Estou falando ainda da abertura. Acostumados a ver uma abertura mais monumental, um evento que chamasse a atenção da cidade para o festival, achei meio incompreensível abandonar a icônica Praça da Estação pelo Parque Municipal. A praça, mais que qualquer outro lugar, é o espaço da convivência democrática. Pela Praça da Estação passam milhares de pessoas, carros e ônibus. Tudo bem que o povão (e não estou usando esse termo de forma pejorativa) talvez não se ligue muito no teatro, mas ao passar e ver que está acontecendo algo diferente na Praça ele é tocado. Nem que seja por pouco tempo. Isso para não dizer que a Praça da Estação e seu entorno já estão marcados no imaginário de lutas da cidade.  O deslocamento para o Parque Municipal me deu a impressão de se tratar de um clubinho. Um clubinho frequentado pelos artistas e por consumidores (e outros nem tanto) habituais de cultura.

Os shows de abertura. Não é que foram ruins. Nada disso. Não quero fazer esse tipo de juízo de valor. Mas penso que caberiam mais para eventos do próprio ponto de encontro (quando isso começou chamava-se Bar do FIT) do que propriamente para uma cerimônia de abertura. A batucada inicial com os artistas mascarados começou meio fria, com os artistas tentando provocar algum incômodo na plateia (não causou) e depois foi estabelecido um ritmo interessante e só. E essa não foi apenas a minha impressão. Várias pessoas que estavam presentes sentiram o mesmo. O.K, vão me dizer que a atual curadoria quis uma mudança de paradigmas. Tudo bem, podem me chamar de velho (e nem vi nada tão novo assim no que foi mostrado, a começar pela batucada), mas ainda prefiro o paradigma antigo.

No mais vou tentar ver o maior número possível de espetáculos e irei comentá-los neste blog.










domingo, 5 de agosto de 2018

Estamos de volta.  Estive realmente envolvido na escritura de um roteiro para cinema, trabalho final para uma especialização em roteiro para cinema e TV na PUC Minas. Não tive muito tempo para me debruçar sobre outros textos. Aliás, tempo nenhum. E para tirar o atraso, vou apresentar alguns comentários.


Prêmio Sinparc.


É o único prêmio que existe em Minas para as artes cênicas, nosso Oscar local. O prêmio do Sated desapareceu há já alguns anos por falta de patrocínio desde que o Sesc saiu. Tem a pretensão de premiar os melhores no teatro infantil, adulto e na dança. Toda premiação é sempre cercada de polêmica. Não poderia ser diferente com o prêmio do Sinparc. A premiação se referiu apenas as produções estreadas em 2017. Como a última premiação havia sido para os espetáculos que estrearam em 2015, 2016 ficou na saudade. O Sinparc corrigiu isso dando a cada espetáculo estreante em 2016 uma placa. Claro que foi uma lembrança importante, mas pensar que muitos espetáculos marcantes, como “Nós” do Grupo Galpão ficaram sem uma premiação à altura de seu esforço e de sua audácia. Pena.

O problema das cerimônias de premiação é sempre o mesmo. Pessoas sem um pingo de intimidade com o palco e mesmo com as artes são chamados a discursar. Esse encargo em geral fica nas mãos de representantes dos patrocinadores. Mas o prêmio já não leva o nome do patrocinador? Que homenagem mais poderia existir? Mas esses discursos existem sempre. Tirando isso, a cerimônia teve uma bela abertura. Politizada como há muito não via. Como ando muito influenciado pelas ideias do sociólogo Jesse Souza (li recentemente seu excelente livro A Elite do Atraso que recomendo com certeza) fiquei pensando sobre o tom de indignação da abertura do prêmio. Indignação certamente justa, mas centrada demais no tema corrupção. Não que este tema seja irrelevante, pelo contrário, mas as vezes o tom me parece carregado dessa indignação destilada pela grande mídia, voltada exclusivamente para o corpo político (e em muitos casos a apenas alguns setores desse corpo político), como se não houvesse corrupção em todo esse sistema em que vivemos, como se a própria lógica do capitalismo não engendrasse a corrupção que assistimos. Ainda assim, a abertura da cerimônia foi certamente o seu ponto alto. Conciliou beleza e emoção.

Quanto a premiação em si não posso comentar, pois meu espetáculo foi indicado para seis categorias e saiu sem levar nenhum. Coisas de qualquer premiação. Interessante a ideia do Sinparc em criar duas novas categorias para premiar as comédias, os prêmios de melhor espetáculo de comédia e melhor ator/atriz de comédia. O que não entendo é que determinado espetáculo foi indicado ao prêmio de melhor espetáculo, mas seus atores não foram indicados ao prêmio de melhor ator/atriz de comédia, mas nas categorias de melhor ator e melhor atriz. Sem sentido. Escolhas assim depõe contra a credibilidade do prêmio.


Lei Municipal de Incentivo e afins


O tão esperado resultado da Lei Municipal de Incentivo à Cultura saiu.  Logo depois do anúncio oficial vieram e-mails convidando para palestras e explicando as novas premissas e etc. Confissão de culpa? Por que falo isso? Basta dar uma olhada na lista dos aprovados para artes cênicas. Grande parte do que foi aprovado se refere a eventos que já fazem parte do calendário cultural da cidade. Então sobra pouca coisa para atividades como produção e circulação. E por percorrer as listas de aprovados todos os anos tenho a estranha sensação de que os benefícios da lei ficam concentrados em determinados grupos e associações com as exceções de praxe. É uma discussão antiga e muitos dos defensores do status quo irão me dizer que talvez esses grupos tenham feito projetos mais consistentes dos que eu ou outro artista menos conhecido tenha apresentado. Pode ser, mas não creio. Não creio porque participei na década passada por quatro anos consecutivos da LMIC. 

O primeiro ano como membro do grupo que escolhe os projetos (por isso conheço as limitações orçamentárias) e nos três anos seguintes como parecerista da lei, ou seja, aquele cara que leu praticamente todos os projetos de artes cênicas e emitiu um parecer sobre a sua aprovação ou não. Confesso que os projetos de todos os grandes grupos passaram pelas minhas mãos e sinceramente não vi nada que sobressaísse em nenhum (a não ser o currículo do grupo, claro). As decepções com a relação de aprovados na LMIC me leva a pensar em outras seleções para outros tipos de evento (recentes até) e com a falta de surpresa que tenho ao constatar quem são os aprovados, me parecendo muitas vezes que tais seleções não passam de uma ação entre amigos. Então por que lançar editais?

Voltando a LMIC: Mais que lutar por aperfeiçoar os mecanismos da lei, penso que deveríamos lutar pela existência de uma política cultural de fato, coisa que penso não existir em nenhuma esfera seja municipal, estadual ou federal.

Geraldo Carrato


Foi com muita dor que nos despedimos desse grande ator. Para mim foi uma surpresa muito grande saber que ele estava doente. O havia visto em janeiro ou fevereiro durante a última Campanha de Popularização. Estávamos no Maletta e ele passou, nos deu um abraço, disse estar morando na Itália, etc. Sua saída vai deixar um vazio. Sempre o considerei um dos atores mais talentosos da cidade, dono de uma voz forte e de uma excelente dicção. O vi pela primeira vez em Pasolini, Paixão e Morte quando o espetáculo se apresentou na PUC na década de 80 do século passado. Fiquei muito impressionado com seu trabalho. O último espetáculo que vi com  ele foi Lisbela e o Prisioneiro. Não sei se foi a última coisa que ele fez. Enfim. A vida é feita de chegadas e partidas. É a única certeza que temos.

Grande Sertão: Veredas


Sem dúvida um dos melhores espetáculos que vi nos últimos anos. Senti-me agraciado por ter visto. Só havia visto um espetáculo de Bia Lessa, Orlando. A montagem visitou BH nos anos 90 e quem fez Orlando foi Beth Goffman. Achei de mal gosto. Havia acabado de ler o romance de Virgína Wolf e achei que o espetáculo não tinha conseguido captar a essência do livro. Mas agora grata surpresa. Um espetáculo vigoroso, um desempenho formidável de Caio Blat, uma construção cênica que desenha com os corpos dos atores os climas e cenários que compõe o universo de Guimarães Rosa. A única nota “negativa” é que é visível que o espetáculo foi criado para um espaço menor que o grande teatro do Palácio das Artes. O gigantismo do espaço nos afastou um pouco do clima construído pela bela poesia da encenação. O espetáculo teria sido muito melhor apreciado se tivesse sido apresentado em um espaço como o Galpão Cine Horto, por exemplo. Lógico que em uma temporada bem maior. Também o improvável “carioquês” de alguns atores mais jovens soa bem ruim para ouvidos mineiros habituados a ler o grande Guima. Mas nada que realmente chegasse a  comprometer o espetáculo.


O Sortilégio da Mariposa



Por fim chegamos a mais recente montagem da Trupe Teatro de Pesquisa da qual também faço parte. O Sortilégio da Mariposa foi o primeiro texto dramático escrito por Federico Garcia Lorca e tem muito dessa sua inexperiência juvenil em seu texto. Quando o li pela primeira vez tive dificuldades em visualizar um espetáculo teatral (e olha que, modéstia à parte, tenho alguma facilidade com isso). A teatralidade de sua poesia foi ficando evidente no processo de ensaios e na imaginação visual do diretor Yuri Simon. Uma delícia de fazer. E penso que de assistir também a julgar pelos aplausos e pelas demonstrações de carinho recebidas por nós atores depois das apresentações. Saúdo meus companheiros de cena: Marcus Labatti, Diego Krisp, Alice Correia, Pauline Braga, Pedro Viera, Simone Caldas e Iolene de Stéfano. E aos que entraram no barco, mas que tiveram que sair por questões pessoais: Alex Zannon e Jader Correa. Vida longa ao nosso espetáculo.  

E por fim a pergunta que até agora não me responderam: haverá seleção de espetáculos locais para o FIT 2018?  

terça-feira, 29 de maio de 2018

Nos porões da loucura


O teatro é a única forma artística que demanda a presença imediata do espectador para que possa acontecer. Pode ser uma obviedade dizer isso, mas outras formas artísticas, como a fotografia, por exemplo, ou a pintura ou a literatura, não necessitam da presença física do seu autor junto ao espectador/leitor para que possa acontecer. A fotografia, o quadro, o livro, estão lá já colocados para minha fruição. O teatro não. Ele precisa da presença física de pelo menos dois (um ator e um espectador) para que possa acontecer. Nesse aspecto, o teatro talvez seja a mais comunicativa das artes ou, em outros termos, a que tem a possibilidade de se comunicar de forma mais autêntica e imediata com o espectador. Uma coisa é a fruição de uma bela exposição que mistura fotografia e pintura fazendo uma leitura plástica do livro de Hiram Firmino sobre o campo de concentração de Barbacena, outra é a possibilitada pelo espetáculo teatral dirigido por Luiz Paixão que encerrou temporada no último dia 26. Devido a paralisação dos caminhoneiros o espetáculo que iria acontecer no domingo foi cancelado.

Falei de toda essa questão da comunicação porque fiquei impressionado com a força comunicacional do espetáculo. Baseado no livro homônimo de Hiram Firmino, cujo trabalho de reportagem lhe valeu o Premio Esso de Jornalismo em 1980, o livro fala da “vida” (se é que podemos chamar aquilo de vida) dos internos da colônia psiquiátrica de Barbacena. O teatro reportagem ou teatro documentário é um tipo de espetáculo que já esteve na moda em outros tempos, mas que voltou a ser pensado e realizado nos dias atuais. Temos bons exemplos em espetáculos como Luiz Antônio/Gabriela que se apresentou em BH há uns dois ou três anos, ou no recente Gisberta que esteve em cartaz no CCBB em janeiro deste ano (Causando uma estranha e inusitada polêmica). Na cena local Marilyn Monroe.doc também é um espetáculo desse tipo. Espetáculos que procuram mostrar a vida de determinados personagens conhecidos nos mostrando determinados fatos em ordem mais ou menos cronológica. Nos Porões da Loucura parte do mesmo princípio, com a diferença que aqui não temos uma personagem em especial, mas todo um coletivo. Uma personagem social se assim podemos dizer.

 O que me chamou a atenção de Nos Porões da Loucura foi a coerência, a unidade do espetáculo. A adaptação, também de autoria de Luiz Paixão mescla em boa medida os relatos dos detentos, com a dramatização de outras situações como, por exemplo, a convivência de funcionários com os internos, os “motivos” que levaram algumas famílias a despachar seus indesejáveis filhos para aquele lugar ou mesmo a conversa cínica entre aproveitadores que negociavam cadáveres e ossos dos mortos naquele campo de concentração mantido pelo estado. A direção não cria malabarismos optando por uma encenação simples. Os cenários e a luz criam uma atmosfera de opressão, mas não tão sufocante como, por exemplo, a cenografia de Blackbird, espetáculo que esteve recentemente em cartaz no CCBB, o que é um alívio dado o peso do que já é dito em cena. Há também uma ênfase no trabalho dos atores, aliás, um dos pontos altos de Nos Porões da Loucura. Um elenco muito coeso com atuações muito consistentes, tanto na construção corporal quanto na propriedade como dizem o texto ou cantam. Há muito tempo que eu não via um elenco tão positivamente homogêneo na cena local. 

Não há arroubos. Todos parecem tocar a mesma triste canção e ela nos dói.  Uma colega que estava comigo se emocionou. Duas outras amigas não se emocionaram assim como eu. Ficamos tristes, mas não nos emocionamos. E para mim isso foi, brechtianamente falando, um acerto da direção. Promover as necessárias quebras no momento em que a empatia entre ator e espectador está prestes a desaguar nos sentimentos de piedade e terror, como queria Aristóteles para a tragédia. O teatro deve divertir, Brecht também o achava. E é lógico que a empatia é algo que deva ser buscado, mas para que haja pensamento, reflexão, faz-se necessário o corte. Ponto para o espetáculo.


Fui ver o Boca de Ouro do Grupo Oficina Multimédia com direção de Ione de Medeiros. Complicado para mim falar do espetáculo já que também estou com uma versão de Boca de Ouro que estrei em novembro do ano passado. Espetáculo que produzi com meus próprios recursos, sem nenhum incentivo ou apoio governamental e que grande parte da comunidade artística da cidade deu pouca ou nenhuma bola (a dita classe crítica e/ou jornalística idem). Enfim. Mas vou falar nem que seja um pouquinho. Gostei muito do espetáculo da Multimédia. Ione de Medeiros num grande momento (o outro grande momento dela para mim foi o magnífico A Casa de Bernarda Alba). Um espetáculo divertido, criativo, que abordou um outro lado da obra de Nelson Rodrigues. No elenco, o destaque para mim fica por conta de Jonathan Horta. Impagável nas várias personagens que faz, especialmente no papel de Guigui. 

  

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Um Pouco de Ar, Por Favor


Um pouco de ar, por favor. Sim, estamos precisando de um pouco de ar. Aliás, de um pouco de ar não, de muito ar, muito ar mesmo. Ar fresco, ar renovado, ar puro. O mundo cheira mal, há um cano de esgoto aberto na minha sala (é a TV), outro no meu quarto (a internet?) e tudo cheira mal, muito mal mesmo. A saída? Cadê a saída? E se a saída é invisível que venha então um pouco de ar por favor. O ar aqui dentro está pesado? Que opressão é essa que eu sinto? Essa opressão me liga a um homem do passado, dos anos 30, por exemplo? Um funcionário de banco sem muitas ambições? Ou uma mulher que passou a vida inteira atrás de um balcão de farmácia, que foi apaixonada pelo patrão, que poderia ter se casado com ele, mas...E que trinta anos depois está prestes a ser demitida pelo filho dele, o filho que poderia ser o filho dela se aquela promessa de amor se consumisse. 

A falta de ar é eterna, ela atravessa o tempo, as gerações. Ela pode ganhar novos contornos, novos limites, como a da mulher que se perdeu da amiga. Mas continua a mesma. Ela é inerente a condição humana. Se para Schopenhauer, o homem é um ser de desejo e o desejo nos conduz a infelicidade. As personagens de  Um pouco de ar, por favor parecem sofrer exatamente do contrário. Não é o desejo que as conduz à infelicidade, mas a falta dele ou a falta de forças para lutar pelo seu desejo. Daí a falta de ar advir talvez muito mais de uma indecisão, de uma fraqueza da existência do que de uma luta desenfreada pela felicidade.

Um pouco de ar, por favor é o mais recente espetáculo da Cia Pierrot Lunar que está completando 25 anos de estrada. Um caminho pontuado por espetáculos que sempre tentaram unir espontaneidade, musicalidade e pesquisa, sem medo de errar. Os conheci no CEFAR quando estudamos teatro, fui calouro da turma deles e aquela turma sempre despertou em mim uma “inveja” positiva. Era uma turma muito alegre e musical. E talentosa também. Uma turma com cara de turma, com união de turma. O exato oposto da minha turma. Muita gente boa saiu dali. Depois da formatura quase toda a turma permaneceu junta e montaram um belo espetáculo que ocupou a antiga sede da Escola Guignard (hoje uma das galerias do Palácio das Artes), Alice, com direção de Fernando Mencarelli. Da turma original, no entanto, ficaram apenas Leo Quintão e Neise Neves que comandam a Cia e o espaço que mantém na Floresta. A eles juntou-se Jussara Fernandino que também havia sido da turma original.

Na linha de pesquisa desenvolvida pela Cia, Um pouco de ar, por favor talvez inaugure um novo momento da companhia. Um momento de reflexão sobre o que o grupo fez no passado e projete para o futuro.  O texto é assinado por Luiz Alberto Abreu (a definir o que significa provocador dramatúrgico, incumbência que coube a Vinícius Souza) e coloca em cena três atores que discutem o presente, o próprio ofício de artista. Estamos na era da confissão.  Artistas falam de suas vidas no palco, usam a experiência de suas trajetórias para discutir o sentido da profissão, o sentido próprio da vida e do mundo. O mais recente espetáculo de Denise Stoklos faz o mesmo. As vezes essa “confissão” do artista aponta para coisas interessantes. É preciso ser autocrítico e repensar sua própria trajetória como parte de uma discussão sobre como mudar o mundo. Às vezes é puro narcisismo. Em Um pouco de ar, por favor não chega a ser uma autocrítica rumo a uma mudança de postura frente ao mundo, mas tampouco é exercício narcisista. Em todo caso, os atores tiram bom proveito do que lhes é proposto. 

O espetáculo é engraçado, ágil e tem belos momentos. Há duas linhas narrativas que se entrecruzam. A primeira é a dos atores que falam de si e a segunda é a das personagens: um bancário dos anos 30, uma mulher nos anos 80 e outra mulher nos tempos atuais. Personagens que buscam um sentido para sua existência, que se esbarram num presente imaginário e que pouco a pouco se descobrem personagens no melhor estilo pirandelliano. A direção é de Chico Pelúcio, um dos integrantes do Grupo Galpão, mas que já dirigiu espetáculos de outros grupos, como o delicioso Opereta, o homem que falava português, com o qual ganhou os prêmios SESC/Sated e Sinparc de melhor direção em 1999.

Luiz Alberto Abreu também dispensa apresentações. É um dos mais ativos dramaturgos brasileiros e coordenou, no princípio dos anos 2000 o oficinão de dramaturgia. É dele a dramaturgia final de Caixa Postal 1500, segunda montagem do Oficinão do Galpão (saudades do velho Oficinão). Talvez o tom excessivamente leve da abordagem dramatúrgica ou da direção, faz com que o espetáculo fique um pouco na superfície sem se aprofundar muito nos dramas que propõe (afinal temos que pelo menos tentar dar uma resposta a esse anseio por mais ar, por favor), optando mais por um jogo cênico que privilegia o cômico das situações, cômico que, como já disse, os atores sabem tirar proveito.

O espetáculo estreou e cumpriu sua temporada inicial no teatro 2 do CCBB. Vamos esperar para vê-lo agora num espaço bem mais intimista que é o que a trupe mantém na Floresta.

Também esteve em cartaz no CCBB o espetáculo Que venha a primavera – Páginas tchecovianas. Havia um clima de expectativa quanto a este espetáculo. Direção de Hélio Zolini que também assina a adaptação e a dramaturgia e a atuação de Mário César Camargo ao lado das atrizes Juliana Martins e Raquel Albergaria, que retorna aos palcos depois de muito tempo afastada. Tchecov é daqueles autores cujo trato é difícil e que exige muita compreensão dos atores que se aventuram em interpretá-lo. Um autor em cujas obras praticamente nada acontece. A ação é muito mais interior, é mais um estado de alma. Tchecov é um autor do desencanto, o mundo do triunfo capitalista do final do século XIX e começo do século XX, encontra nele um crítico mordaz. Não há grandeza humana, não há vitória sobre a natureza. O que há é tristeza e melancolia. O humor de seu texto parece ser um presságio sobre o que estava por vir pouco tempo depois de sua morte: a grande guerra, a revolução, a ditadura, o desespero. (Estamos precisando de um Tchecov contemporâneo ou será que ele já surgiu e ainda não percebemos). 

E a montagem capta exatamente esse humor tchecoviano na cena que abre o espetáculo. Os três atores estão dispostos em três círculos distintos dentro de um outro círculo, em situações que evocam um clima de guerra e abandono. Uma cena que conjuga dança e teatro, de uma vivacidade que impressiona e incomoda. O problema é que depois de um prólogo brilhante, entramos em dois outros níveis narrativos que parecem não se comunicar entre si e nem com o prólogo nos dando a impressão de serem três espetáculos distintos. Na segunda parte do espetáculo eles são atores se preparando para entrar em cena e na terceira há a apresentação do conto “A Corista”. Há uma diferença de abordagem e uma diferença de energia. A cena dos atores nos bastidores me pareceu ser apenas uma transição para a apresentação do conto “A Corista” e os atores me deram a impressão de não dar muita atenção a ela. 

A cena da corista nos apresenta uma dramaturgia mais coesa o que é um ponto positivo. O problema da cena é que ela tem um ritmo bem mais lento (destoando das outras duas cenas) se prolongando mais que o necessário. Como se a direção tentasse entrar no universo tchecoviano por uma via mais contemplativa, fazendo do ritmo mais lento um retrato dos estados de alma das personagens. Não deixa de ser uma proposta interessante, mas a execução acabou nos passando a sensação de que o espetáculo tinha ali uma grande barriga (para usar o jargão teatral) o que acabou cansando um pouco a assistência. Do trio de atuação Juliana Martins é a atriz que melhor tira proveito das situações propostas nos brindando com uma bela composição de sua corista. O espetáculo tem também uma bela luz e uma trilha musical bem interessante.  Uma boa proposta sem dúvida, mas que talvez precise de um pouco mais de tempo para amadurecer.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Durrenmatt não acredita na humanidade


Uma cidade arruinada economicamente. As poucas fábricas que existiam fecharam, o comércio regrediu, o desemprego grassa. Não, não é uma fábula sobre o Brasil pós golpe.  Essa é a situação de Gullen, cidadezinha perdida no interior da Suíça. Outrora três ou quatro expressos paravam em sua estação antes de seguirem caminho para as principais cidades européias. Hoje os trens passam direto e só servem para marcar a passagem do tempo. Gullen vai de mal a pior a não ser que... A não ser que uma ilustre filha da cidade, Claire Waescher, ou melhor, Claire Zahanassian, multimilionária dona da Armenian Oil salve a cidade da bancarrota total. Claire saiu de Gullen aos dezessete anos. Trinta anos depois retorna coberta de ouro para orgulho de uma cidade em decadência. O trem que não parava mais por ali faz uma parada obrigatória e a grande milionária desce acompanhada por seu séquito. A cidade natal a recebe com banda de música, com faixas e cartazes. Todos os notáveis estão presentes: o prefeito, o padre, o professor, o médico e o ex-namorado. Então, no banquete que é oferecido em sua homenagem, Claire Zahanassian anuncia que doará um bilhão para a cidade sendo metade desse valor para os habitantes de Gullen. Mas há uma condição. Ela quer a morte de Alfred Schill, seu ex-namorado, pivô dos infortúnios que a lançaram no mundo, que a transformaram em prostituta (foi como prostituta que ela conheceu o velho Zahanassian que lhe transmitiu a fortuna). Num primeiro momento os grandes da cidade recuam horrorizados, mas ao longo do tempo todos cedem à tentação do dinheiro que virá e a cidade entra num vórtice de consumismo que atinge a todos, inclusive aos familiares de Alfred Schill e o resultado.... Bem, não é preciso dizer, é?

Esse é o enredo básico de “A Visita da Velha Senhora”, texto escrito pelo dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt (1921-1990) em 1956. E apesar da distância no tempo (62 anos) como permanece atual. O que o torna um clássico. Durrenmatt iniciou sua carreira teatral nos anos 40 escrevendo sketches para shows em cabarés e para o radioteatro que na época era muito respeitado na Suíça. Sua primeira peça, “Está Escrito”, obra de 1947, não obteve sucesso. Ele escreveria outros textos com maior ou menor impacto até a “A Visita da Velha Senhora” que é sua obra capital. O final dos anos 40 e os anos 50 foram marcados na Europa pelo aparecimento do teatro do absurdo (ou teatro existencialista como preferem alguns), cujos maiores expoentes foram Eugene Ionesco e Samuel Beckett, e pela descoberta do teatro de Brecht (cuja excursão à França no começo dos anos 50 provocou um verdadeiro terremoto). Mas onde situar Durrenmatt (se é que ele tem que ser situado em algum lugar)? Uma rápida olhada por sua obra nos levaria a crer que ele seria um discípulo de Brecht. Sim, sua obra revela várias influências da dramaturgia brechtiana, mas ao contrário do bardo alemão, Durrenmatt não é otimista. O teatro não serve aqui para uma transformação da consciência rumo à luta por um mundo mais justo. O que sobra ao fim da peça é um gosto amargo na boca. O que Durrenmatt faz é nos mostrar num triste espelho o horror de nossa solidão, de nossa condição de filhos de Caim. A Vida é dura, é como uma corda bamba estendida sobre um abismo e não há rede de segurança lá abaixo. Curioso que essa percepção amarga da existência venha de um filho de pastor protestante (o filósofo pessimista Emil Cioran também era filho de um padre ortodoxo).

O espetáculo dirigido por Luiz Villaça tendo no elenco Denise Fraga e Tuca Andrada não decepciona, pelo contrário. É uma lufada de ar puro em tempos tão empestados, ou como disse Fraga ao final do espetáculo: Esses tempos esquisitos que vivemos. Experimente trocar as personagens do enredo por outras da política nacional sem se esquecer de substituir a doação de um bilhão pela disputa pelo pré-sal para entender a importância do espetáculo nos dias atuais.

A montagem de Villaça revela toda a verve amarga de Durrenmatt dispondo em justa medida os elementos cômicos e trágicos, sem olvidar do lado brechtiano do texto revelado no uso da música, no envolvimento da plateia que é tomada ora como testemunha, ora como partícipe da “farsa de Gullen”, dos cenários não naturalistas, da presença quase contínua de toda a trupe em cena mesmo quando não participam diretamente da ação. Denise Fraga e Tuca Andrada se destacam. Fraga nos dá uma deliciosa Clara Zahanassian, uma mulher trágica que não perde o senso de humor, que sabe rir do próprio destino. Destino que ela própria, aliás, forja como uma moira. Claro que ela ri do alto de sua fortuna, do dinheiro que a permite transformar o mundo em um bordel. Mas que bordel é esse? Ao realizar o velho sonho de se casar na igrejinha de Gullen (com seu nono marido) e de levar consigo o cadáver de Alfred Schill como o grande troféu de sua vingança ela obtém grande satisfação. Mas não há felicidade. Seu ato visa destruir o passado, mas qual futuro constrói com isso? Transformar o mundo em um bordel por força do seu dinheiro não a torna menos desgraçada que os outros reles mortais, pelo contrário, a iguala ao mais desprezível de seus carrascos. A felicidade é impossível quando a mola de tudo é o ressentimento e a vingança não repara o passado, mas compromete o futuro.  O riso de Clara Zahanassian no final das contas é um riso triste, amargo. 

É o riso da solidão que ela sabe ser irreparável. Ela destrói Alfred Schill, seu primeiro grande amor, e mesmo que leve consigo seu cadáver para enterrá-lo num mausoléu em seu palácio, não o terá nunca. A vingança é sempre uma vitória de Pirro. E Denise Fraga sabe como mostrar esse riso amargo e triste que ela exibe como uma máscara clownesca. Tuca Andrada também nos apresenta um Schill humano, profundo, um homem que ao longo da peça desperta para o mal que fez no passado e para o medo do futuro. Futuro que para ele será a morte pelas mãos de sua própria comunidade.  Aos poucos vemos aquele homem imponente do começo do espetáculo se apequenar até chegar à situação final em que, resignado, aceita ser o cordeiro a ser imolado. Seu Schill não tem desespero. Ele simplesmente desistiu de lutar porque compreendeu que o mundo é uma roda viva e que alguns serão inevitavelmente devorados por ela. 

Todo o elenco é bom. Gostaria de assinalar o trabalho do ator Ronis Ferreira que faz o professor. Seu personagem também se destaca por ser a única voz sensata em meio a turba inebriada pela perspectiva da riqueza iminente. Inicialmente ele é o porta voz da razão, do humanismo, mas no mesmo discurso assume a fraqueza da carne e confessa sua traição. Não sem antes nos deixar essa pérola de reflexão: “Eu tenho medo, Schill, exatamente como o senhor teve medo. E sei, ainda, que, algum dia, chegará uma velha senhora também para nós e que, então, se passará conosco o que, agora, se passa com o senhor. ” A história há de nos cobrar pela infâmia.

“A Visita da Velha Senhora” é sem dúvida um dos grandes espetáculos a se apresentar em BH neste 2018. Pena que em temporada tão curta. E, apresentada como tragicomédia, o que sobra no final não é o riso, mas o incômodo de toda a situação. Um espetáculo que cai como uma luva para os tempos atuais.



domingo, 29 de abril de 2018

A safra teatral está realmente muito boa


Preto, que encerra temporada em BH nesta segunda-feira, 30 de abril, é um dos grandes espetáculos da temporada. Produção da Cia Brasileira de Teatro, grupo que tem sua sede em Curitiba,é comandada pelo diretor Márcio Abreu e que agregou nos últimos anos a luminosa cumplicidade artística de Renata Sorrah. 

A Cia Brasileira de Teatro já esteve em BH em outras oportunidades com espetáculos como “Vida”, “Oxigênio”, “Projeto Brasil”, “Esta Criança”, “Krum” e a agora “Preto”. (Será que me esqueci de algum?) Márcio Abreu é um dos curadores do Festival de Teatro de Curitiba e em BH dirigiu “Nós”, último espetáculo do Grupo Galpão. “Preto” assim como “Nós” é daqueles espetáculos para os quais é preciso estar preparado para assisti-lo. Da mesma forma que é necessária coragem dos atores e outros criadores envolvidos para embarcar numa empreitada que simplesmente tira o chão dos atores quebrando completamente as noções de drama, dramaturgia e personagem. Primeiro porque não há personagem ou se o personagem existe (é claro que existe) está imbricado de forma tão sutil no pessoal do ator que nos deixa em dúvida. Não aquele pessoal que se tornou moda no teatro contemporâneo (pelo menos no teatro feito em BH), aquele pessoal do ator quebrar a quarta parede e contar coisas de sua vida privada para plateia. A imbricação do personagem e do pessoal do ator em “Preto” e em “Nós” é separado por uma linha tênue que exige dos atores um domínio do ofício que os permita navegar pela fábula proposta sem que a plateia não se dê conta da diferença. 

É um universo de sutilezas e de detalhes que nos faz acreditar que estamos no sofá conversando com a atriz Renata Sorrah, mas que ao mesmo tempo nos leva a desconfiar daquela atriz que na verdade é personagem, mas que não deixa de ser a própria atriz. Para navegar em águas desse tipo é necessária não só coragem, mas adesão. Adesão ao que está sendo dito. E o que está sendo dito ou mostrado? O título nos remete a um espetáculo político, de protesto, que coloca a questão do negro na ordem do dia. Um espetáculo panfletário como ouvi de alguns ou esquemático em sua proposta dramatúrgica como ouvi de outros. Sinto discordar.

“Preto” é panfletário na medida em que a poesia possa ser panfletária, radical em sua proposta de linguagem. E a proposta dramatúrgica de “Preto” é deveras radical. E esquemático é algo que o espetáculo definitivamente não é. Não se está discutindo uma questão racial ou a “vitimização” da qual boa parcela da sociedade brasileira é submetida (54% da população brasileira segundo dados do IBGE). “Preto” põe em discussão a questão da diferença, da diversidade. Outros espetáculos o fazem, é verdade. Mas Márcio Abreu e sua trupe envolvem a plateia na discussão tocando-nos por outras bordas. Pela forma sutil que a problemática vai sendo aos poucos inserida ao longo da narrativa, pela troca de papéis, pelo cotidiano que não é naturalizado, mas dissecado no seu absurdo, pelo personagem/não personagem que vaga pelo poético da situação, pela memória como na cena em que Renata Sorrah, Grace Passô e Nadja Naira “revivem” uma cena de “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, um dos sucessos teatrais da carreira de Sorrah. As situações e frases de um texto que parece estar sendo construído a cada espetáculo nos envolvem num caleidoscópio que nos lembra uma das primeiras cenas de “Nós”, aquela em que os atores estão preparando uma sopa e Teuda continuamente derruba um copo com água. Em “Preto” não há sopa, nem copo d’água, mas um contínuo construir e reconstruir o que está sendo dito, fazendo em cena exatamente o que Grace Passô diz em um dos momentos da peça “...e aí você vai buscar o fogo. Obstinadamente você vai buscar o fogo, e essa obstinação que surge, de repente, é também uma espécie de fogo interno, que arde, aqui dentro e te faz agir, saber, correr, erguer, sustentar, lutar, suar...”. É um texto que pode bem resumir o que é o espetáculo.

Destaque para as atuações. A vibrante atuação de Grace Passô que preenche todo o espetáculo. Grace ocupa todos os espaços do palco com seu corpo, com sua presença, com sua voz. Sua potente e bela voz. Há um momento na peça em que ela canta que parece estarmos vendo uma entidade do samba ou do jazz. Uma atuação impressionante. Renata Sorrah e Cássia Damasceno também se destacam. Muito legal ver uma atriz como Renata Sorrah, com sua impressionante trajetória na televisão, no cinema e no teatro, que poderia repousar sobre os muitos louros já conquistados ao longo de sua carreira, não temer o risco. Isso faz um verdadeiro artista. Os outros atores também estão bem. Penso apenas que os atores Felipe Soares e Rafael Bacelar poderiam ter sido mais explorados. Dois bons atores que dão conta do recado, mas que não tiveram espaço para mostrar mais sua potencialidade. O espetáculo é muito centrado nas mulheres, especialmente na dupla Passô/Sorrah.

O único problema do espetáculo na minha opinião é sua duração e talvez isso seja um problema da direção. Já havia sentido isso em outros espetáculos da Cia Brasileira de Teatro, especialmente em “Vida” que vi duas vezes. O espetáculo diz coisas muito fortes e importantes de uma maneira absolutamente singular, porém há, parece, um desejo de reiteração que faz com que o espetáculo tenha mais de um clímax e quando parece que vai acabar recomeça sem muita coisa nova acrescentar. Para mim poderia ter acabado na cena em que Grace faz um poema em que conta todos os dias que se passaram desde o assassinato da vereadora Marielle. Um momento sublime. Outras propostas da direção como as cabeças gigantes também não chegam a mim. No mais é um espetáculo que não só merece ser visto, mas que precisa ser visto. 

domingo, 22 de abril de 2018

Vamos falar de teatro?


Já disse tempos atrás que não sou crítico de teatro. Acho mesmo um pouco incompatível a profissão de ator atuante com a de crítico. Mesmo assim vou inaugurar agora uma sessão em que vou me permitir falar do que vejo nos palcos. Do que vejo e principalmente do que gosto.

Curitiba


Em 2018 foi a quinta vez que fui a Curitiba por causa do festival, um dos mais importantes do país. Desta vez estive na equipe do espetáculo "Esquecidos e Recordados", dirigido por Igor Ayres, o mesmo diretor de meus dois últimos trabalhos "Boca de Ouro" e "Dois na Pista"". Somos uma equipe. A dramaturgia do espetáculo é de Luiz Drumond que faz sua estréia na escrita cênica. O trabalho que envolveu pesquisa sobre a situação dos moradores de rua, fala exatamente sobre essa parte da sociedade que pagamos para esquecer. "Esse grande zoológico humano para o qual compramos ingressos para não ver", conforme diz uma das personagens, exatamente a vivida por Luiz Drumond que também é ator no espetáculo. Ele divide a cena com Horácio Martins e Ana Justino. O trio tem uma química interessante o que rende cenas muito boas e uma cumplicidade cênica bem saudável. Ana Justino, uma linda atriz negra, se destaca com sua moradora de rua, a que sofre os piores maus tratos desse arremedo de sociedade em que vivemos. Imagine ser mulher, negra e moradora de rua? O texto tem força (e como poderia não ter falando do que fala?), mas talvez se ressinta um pouco de querer falar muitas coisas num tempo reduzido. 

O que é aliás, compreensível em quem começa a escrever para teatro especialmente se pretende fazer um teatro mais político, mais engajado em questões sociais. Também há soluções da montagem que não chegam muito em mim, como o uso de máscaras em determinadas cenas, por exemplo. Destaque porém, para a cena em que os três atores manipulam marionetes simulando um estupro. Uma cena perturbadora. O espetáculo se apresentou no Mini-Guaíra, dentro do complexo cultural do Teatro Guaíra que tem outros dois espaços. Uma espécie de Palácio das Artes de Curitiba, dentro do Fringe que é a mostra paralela do festival. O público não foi lá essas coisas, aliás tenho várias ressalvas a participação no Fringe. O Festival de Curitiba acontece durante treze dias, mas são apresentados mais de duzentos espetáculos vindos de todos os lugares do país. A capital paranaense deve ter metade da população de BH, mesmo com os turistas que chegam é difícil encontrar um público satisfatório para tantos espetáculos. O que lota e esgota são os grandes espetáculos da mostra oficial, especialmente os do eixo Rio-São Paulo. Alguns espetáculos do Fringe conseguem emplacar, mas a maioria fica às moscas. Mesmo assim o festival só aumenta de tamanho. Vá entender.

Tive o privilégio de ver três grandes espetáculos da mostra oficial. O excepcional "Suassuna: O Auto do Reino do Sol",  da Cia Barca dos Corações Partidos e com direção de Luiz Carlos Vasconcelos, seguramente um dos melhores espetáculos que vi nos últimos anos. De uma simplicidade, de um despojamento, mas de uma poesia assustadora. Uma trupe genial de bons atores, bons cantores e bons músicos e uma direção precisa do Luiz. Um texto empolgante de Bráulio Tavares que nos remete de imediato ao universo de Ariano Suassuna e ao mesmo tempo às próprias fontes de sua obra, como as tramas medievais que inspiraram inclusive Shakespeare. Há duas histórias correndo no Auto do Reino do Sol, a primeira é de uma trupe de circo que viaja pelo sertão e almeja chegar a Taperoá e a segunda é a história de amor de dois jovens pertencentes a duas famílias rivais que fogem para se encontrar e acabam fugindo com o circo. As canções são de Chico César,  Beto Lemos e  Alfredo Del Penho. O espetáculo até que começa meio morno, uma canção aqui, outra dois minutos depois e eu pensei "Vou ver um show de música?" Mas não, era só um aquecimento para oque nos seria presenteado. 

Sim, a expressão é essa, presenteado. Um presente que nos foi dado. E assistir a um espetáculo desses num momento tão difícil. Foi exatamente no final de semana da prisão de Lula e de sua ida para a masmorra de Curitiba. E aí nos vem um espetáculo que fala do sertão-mar desse país mestiço, desse país caboclo que se recusa a se enxergar como tal. Encontrei com o crítico Miguel Anunciação na saída do teatro e fomos tomar uma cerveja e ele comentou como ficou impressionado com a reação da platéia. "Parecia que estávamos num teatro da Paraíba e não do Paraná". É que o nordeste é universal meu caro Miguel. É que mesmo com os tempos toscos que estamos vivendo ainda há espaço para a beleza, para apreciarmos a beleza. Encontrei com os atores e com o diretor no Café do Teatro e lhes disse sem vergonha de parecer piegas: Um espetáculo que não só lavou minh'alma, mas também a exaguou e passou amaciante. E o cavalo? Ou Melhor, e o ator que faz um cavalo? Genial.

A arte nos salva. Quando tudo acabar ainda teremos a arte. A arte e o amor.
Muito confete, né? Eu sou assim com as coisas que gosto.

Tom na Fazenda é outro espetáculo do Rio de Janeiro. (O Auto do Reino do Sol também) E igualmente multipremiado. Vemos também um despojamento, uma simplicidade da encenação (simplicidade é tudo), mas não se engane. Há um jogo perigoso sendo mostrado. Há um delicioso jogo perigoso onde o que conta é o texto, de  Michel Marc Bouchard (mas poderia ser de Sam Shepard de quem ainda vou montar alguma coisa) e o jogo dos atores. Tom é um publicitário e seu namorado morreu. Ele vai para a fazenda da família do namorado para o enterro. A mãe do namorado nunca havia ouvido falar dele e, evidentemente não sabe nada da homossexualidade do filho morto. Mas há outro filho, um jovem truculento com o qual Tom inicia um jogo que...Melhor não falar mais nada, afinal o espetáculo pode vir a BH. Um espetáculo denso, um texto muito instigante e atuações impecáveis, especialmente as de Armando Babaioff que faz Tom e de Gustavo Vaz que encarna o irmão. As outras atrizes do elenco tem menor destaque, afinal a trama principal é o jogo dos dois homens, mas cumprem muito bem o papel. O despojamento dos cenários, apenas uma grande lona que cobre todo o palco, uma lona suja que vira poeira, que vira barro, que vira o lôdo em que estão todos mergulhados naquela fazenda, das relações de amor, ódio e engano que permeiam a trama. Não é preciso mais que uma lona e alguns baldes para construirmos uma fazenda. Essa é a magia do teatro. O que importa é o ator inteiro no palco, com sua voz, com seu corpo, com sua inteligência e sentimento. O resto é fru-fru.

Denise Stoklos em extinção foi o terceiro espetáculo da mostra oficial que vi. Denise Stoklos dispensa comentários. É uma diva. Uma atriz completa. Ela utiliza o texto de Thomas Bernhard para fazer uma reflexão sobre sua vida, sobre sua profissão, sobre sua trajetória. Como já tinha visto outros trabalhos dela confesso que esse não foi o que mais me tocou apesar do tom autobiográfico que o marca, mas é sempre uma alegria ver uma artista do calibre dela em cena. É muito bom ver a arte reagir ao estado de coisas que vivemos nesse país, nesse planeta, no momento presente. "Em Extinção" é um espetáculo político. Ao falarmos de nós, de nosso corpo, de nossos afetos, estamos fazendo política. Ao nos darmos ao luxo de criticarmos nossa própria criação, nossa própria trajetória, colocamos uma espécie de espelho para que a sociedade também se olhe e se critique. Denise de move num cenário em ruínas, restos de um incêndio, a nos lembrar tanto uma carvoaria, como uma cidade em ruínas. É isso. Ela faz um balanço de si como se o próprio mundo ao redor fosse chamado a fazê-lo. As ruínas são o que sobrou do velho mundo e sobre elas temos a oportunidade de edificar um novo mundo. Em Extinção é uma bela metáfora do presente.

Três espetáculos de uma mostra tão grande, mas que me deram uma pílula do que vem sendo pensado e produzido no teatro brasileiro. Um teatro forte, questionador e humano, demasiado humano.

Também tive o privilégio de ver um trabalho bem interessante no Fringe: "Rapsodos", que nada mais é que a dramatização de fragmentos da Íliada e da Odisséia. Três ótimos atores e um trabalho sobre a palavra de dar inveja. Uma aula que deixaria muito satisfeito ao grande mestre Italo Mudado se estivesse vivo.

Na próxima coluna vou falar sobre Preto, espetáculo que também estava em Curitiba, mas que o vi em BH no CCBB.