terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Importado


Encarar a plateia de frente, sozinho, sem ninguém ao seu lado para dividir a cumplicidade ou para ajuda-lo num momento de sufoco não é tarefa para qualquer ator. Já tive a oportunidade de experimentar o formato monólogo quando fiz “O Contrabaixo”. Foi uma experiência assustadora a princípio, mas depois, como o texto já fazia parte de mim, ficou muito divertido.  Atores gostam de monólogos. É um grande exercício para testarmos e aprimorarmos o nosso trabalho. Também estabelece uma ligação muito especial com a plateia, especialmente se for num teatro de bolso ou num teatro de arena, com o público ali quase encostado em você. Por estar em cartaz na campanha não estou tendo oportunidade de ver muitas coisas, mas consegui ver dois monólogos muito interessantes. Ciclos e O Importado.  O segundo atinge melhor os objetivos a que se propõe.

O Importado é um espetáculo articulado em cima de dois momentos distintos que são apresentados duas vezes cada, mas com mudanças de intensidade em cada momento. Como se fossem dois atos.  Num primeiro momento, o melhor em minha opinião, talvez nem poderia ser chamado teatro. Odilon Esteves, o ator e proponente do projeto aparece em cena e sem pisar efetivamente no palco, falando em um microfone instalado ao lado da ribalta, lê para a plateia uma carta de seu próprio punho. Ele nos explica o que o levou a propor o trabalho, quais foram suas premissas. Descobrimos que a temática inicial é a loucura e, como estamos vivendo tempos pouco normais para dizer o mínimo, o reconhecimento das situações que ele expõe ao ler sua carta nos torna seus cúmplices imediatos. É um momento lindo. Odilon Esteves é um ator que, além do talento, é um dos artistas mais carismáticos da cidade. Fruto de seu trabalho com o grupo Luna Lunera e também no cinema. 

O fato é que todo mundo gosta do Odilon. A busca da loucura o fez chegar ao conto “O Importado vermelho de Noé”, do escritor mineiro radicado em São Paulo André Sant’Anna, filho do também escritor Sérgio Sant’Anna, publicado em 1999. Então Odilon vai para o palco e trata de dar vida a estranha personagem. Uma personagem que tem pouco mais que meia dúzia de frases feitas repetidas ad nauseum que chegam a cansar a plateia. A repetição é um efeito que busca enfatizar o que a princípio pode parecer banal, irrelevante, sem sentido até, mas possui um efeito comunicativo as vezes bastante eficaz. O incomodo que provoca é prova de que passamos a ver aquilo que é dito repetidamente de outra maneira, descobrindo sentidos que até então permaneciam ocultos e essa descoberta (da nossa própria ignorância sobre o fato) é muitas vezes irritante.

 O conto pode ter passado batido quando foi escrito (talvez nem tanto ou não teria entrado na antologia dos cem melhores contos brasileiros do século XX). Pelo menos o discurso da personagem pode não ter encontrado eco quando foi a público. Afinal ainda vivíamos os anos FHC e a direita, refestelada com os frutos da sanha neoliberal, não tinha coragem de dizer abertamente o que pensava. Num tom de confissão, isolado em seu carro preso no trânsito brutal de São Paulo, a personagem dá voz ao que traz dentro de seu peito e o que ele traz não é nada legal, nada politicamente correto, especialmente quando se refere as minorias, aos negros, ao que possa ser genuinamente nacional. A personagem quer ir para Nova York onde estaria chovendo dinheiro, mas está presa em seu carro importado vermelho na marginal Tietê paralisada pela chuva (de água) que cai sobre a São Paulo administrada por um prefeito negro. Uma personagem típica da era neoliberal (Eu tenho, eu quero, eu posso, será meu mesmo que o mundo ao meu redor desmorone).

Se o texto pode ter provocado algum tipo de repulsa quando foi publicado, nos dias de imbecilidade coletiva em que vivemos, soa perfeitamente “normal” e é só lembrarmos das postagens que ganharam as redes sociais nos últimos anos (e dos quais Odilon tirou proveito para sua montagem) para constatar a estranha e incômoda atualidade do texto. Então, num terceiro momento do espetáculo, Odilon volta a ler sua carta para a plateia e assim descobrimos que seu processo criativo que havia começado por uma investigação sobre a loucura, alcançou seu verdadeiro objetivo que era falar do racismo. O espetáculo faz então um paralelo entre o racismo da personagem do conto e o racismo nosso de cada de dia. E esse racismo nosso está na naturalização de atitudes, de padrões sociais que julgávamos aceitáveis até que os anos Lula/Dilma mostraram que eles são na verdade a própria raiz de nossa constituição como povo. 

Para usar as palavras de Jessé de Souza, a escravidão é o nosso pior legado, o que mais marcas deixou em nosso ser brasileiro e que até hoje nos assombram. E a eleição de Bolsonaro está aí para prova-lo. Odilon nos traz para a essa reflexão sobre o racismo sua própria vida de branco privilegiado, costurando memórias de sua infância/adolescência, de uma amiga negra de infância que depois foi trabalhar em sua casa. É para mim o grande momento do espetáculo e nem precisaria ter uma quarta parte em que o ator retorna com mais intensidade (e insanidade) ao seu Noé perdido na água suja de São Paulo. Mas é preciso fazer com que a plateia se incomode e saia pensando no espetáculo e, nesse sentido, foi uma escolha muito feliz porque é isso que “O Importado” faz.  

Para a premiação do Sinparc que deverá acontecer ainda no primeiro semestre, Odilon é certamente o favorito para o prêmio de Melhor ator. E se a premiação o confirmar será merecido.


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