O Importado
Encarar a plateia de frente,
sozinho, sem ninguém ao seu lado para dividir a cumplicidade ou para ajuda-lo
num momento de sufoco não é tarefa para qualquer ator. Já tive a oportunidade
de experimentar o formato monólogo quando fiz “O Contrabaixo”. Foi uma
experiência assustadora a princípio, mas depois, como o texto já fazia parte de
mim, ficou muito divertido. Atores
gostam de monólogos. É um grande exercício para testarmos e aprimorarmos o
nosso trabalho. Também estabelece uma ligação muito especial com a plateia,
especialmente se for num teatro de bolso ou num teatro de arena, com o público
ali quase encostado em você. Por estar em cartaz na campanha não estou tendo
oportunidade de ver muitas coisas, mas consegui ver dois monólogos muito
interessantes. Ciclos e O Importado. O
segundo atinge melhor os objetivos a que se propõe.
O Importado é um espetáculo
articulado em cima de dois momentos distintos que são apresentados duas vezes
cada, mas com mudanças de intensidade em cada momento. Como se fossem dois
atos. Num primeiro momento, o melhor em
minha opinião, talvez nem poderia ser chamado teatro. Odilon Esteves, o ator e
proponente do projeto aparece em cena e sem pisar efetivamente no palco,
falando em um microfone instalado ao lado da ribalta, lê para a plateia uma
carta de seu próprio punho. Ele nos explica o que o levou a propor o trabalho,
quais foram suas premissas. Descobrimos que a temática inicial é a loucura e,
como estamos vivendo tempos pouco normais para dizer o mínimo, o reconhecimento
das situações que ele expõe ao ler sua carta nos torna seus cúmplices
imediatos. É um momento lindo. Odilon Esteves é um ator que, além do talento, é
um dos artistas mais carismáticos da cidade. Fruto de seu trabalho com o grupo
Luna Lunera e também no cinema.
O fato é que todo mundo gosta do Odilon. A busca da loucura o fez chegar ao conto “O Importado vermelho de Noé”, do escritor mineiro radicado em São Paulo André Sant’Anna, filho do também escritor Sérgio Sant’Anna, publicado em 1999. Então Odilon vai para o palco e trata de dar vida a estranha personagem. Uma personagem que tem pouco mais que meia dúzia de frases feitas repetidas ad nauseum que chegam a cansar a plateia. A repetição é um efeito que busca enfatizar o que a princípio pode parecer banal, irrelevante, sem sentido até, mas possui um efeito comunicativo as vezes bastante eficaz. O incomodo que provoca é prova de que passamos a ver aquilo que é dito repetidamente de outra maneira, descobrindo sentidos que até então permaneciam ocultos e essa descoberta (da nossa própria ignorância sobre o fato) é muitas vezes irritante.
O fato é que todo mundo gosta do Odilon. A busca da loucura o fez chegar ao conto “O Importado vermelho de Noé”, do escritor mineiro radicado em São Paulo André Sant’Anna, filho do também escritor Sérgio Sant’Anna, publicado em 1999. Então Odilon vai para o palco e trata de dar vida a estranha personagem. Uma personagem que tem pouco mais que meia dúzia de frases feitas repetidas ad nauseum que chegam a cansar a plateia. A repetição é um efeito que busca enfatizar o que a princípio pode parecer banal, irrelevante, sem sentido até, mas possui um efeito comunicativo as vezes bastante eficaz. O incomodo que provoca é prova de que passamos a ver aquilo que é dito repetidamente de outra maneira, descobrindo sentidos que até então permaneciam ocultos e essa descoberta (da nossa própria ignorância sobre o fato) é muitas vezes irritante.
O conto pode ter passado batido quando foi
escrito (talvez nem tanto ou não teria entrado na antologia dos cem melhores
contos brasileiros do século XX). Pelo menos o discurso da personagem pode não
ter encontrado eco quando foi a público. Afinal ainda vivíamos os anos FHC e a
direita, refestelada com os frutos da sanha neoliberal, não tinha coragem de
dizer abertamente o que pensava. Num tom de confissão, isolado em seu carro
preso no trânsito brutal de São Paulo, a personagem dá voz ao que traz dentro
de seu peito e o que ele traz não é nada legal, nada politicamente correto, especialmente
quando se refere as minorias, aos negros, ao que possa ser genuinamente
nacional. A personagem quer ir para Nova York onde estaria chovendo dinheiro,
mas está presa em seu carro importado vermelho na marginal Tietê paralisada
pela chuva (de água) que cai sobre a São Paulo administrada por um prefeito
negro. Uma personagem típica da era neoliberal (Eu tenho, eu quero, eu posso,
será meu mesmo que o mundo ao meu redor desmorone).
Se o texto pode ter provocado algum
tipo de repulsa quando foi publicado, nos dias de imbecilidade coletiva em que
vivemos, soa perfeitamente “normal” e é só lembrarmos das postagens que
ganharam as redes sociais nos últimos anos (e dos quais Odilon tirou proveito para
sua montagem) para constatar a estranha e incômoda atualidade do texto. Então,
num terceiro momento do espetáculo, Odilon volta a ler sua carta para a plateia
e assim descobrimos que seu processo criativo que havia começado por uma
investigação sobre a loucura, alcançou seu verdadeiro objetivo que era falar do
racismo. O espetáculo faz então um paralelo entre o racismo da personagem do conto
e o racismo nosso de cada de dia. E esse racismo nosso está na naturalização de
atitudes, de padrões sociais que julgávamos aceitáveis até que os anos
Lula/Dilma mostraram que eles são na verdade a própria raiz de nossa
constituição como povo.
Para usar as palavras de Jessé de Souza, a escravidão é o nosso pior legado, o que mais marcas deixou em nosso ser brasileiro e que até hoje nos assombram. E a eleição de Bolsonaro está aí para prova-lo. Odilon nos traz para a essa reflexão sobre o racismo sua própria vida de branco privilegiado, costurando memórias de sua infância/adolescência, de uma amiga negra de infância que depois foi trabalhar em sua casa. É para mim o grande momento do espetáculo e nem precisaria ter uma quarta parte em que o ator retorna com mais intensidade (e insanidade) ao seu Noé perdido na água suja de São Paulo. Mas é preciso fazer com que a plateia se incomode e saia pensando no espetáculo e, nesse sentido, foi uma escolha muito feliz porque é isso que “O Importado” faz.
Para usar as palavras de Jessé de Souza, a escravidão é o nosso pior legado, o que mais marcas deixou em nosso ser brasileiro e que até hoje nos assombram. E a eleição de Bolsonaro está aí para prova-lo. Odilon nos traz para a essa reflexão sobre o racismo sua própria vida de branco privilegiado, costurando memórias de sua infância/adolescência, de uma amiga negra de infância que depois foi trabalhar em sua casa. É para mim o grande momento do espetáculo e nem precisaria ter uma quarta parte em que o ator retorna com mais intensidade (e insanidade) ao seu Noé perdido na água suja de São Paulo. Mas é preciso fazer com que a plateia se incomode e saia pensando no espetáculo e, nesse sentido, foi uma escolha muito feliz porque é isso que “O Importado” faz.
Para a premiação do Sinparc que
deverá acontecer ainda no primeiro semestre, Odilon é certamente o favorito
para o prêmio de Melhor ator. E se a premiação o confirmar será merecido.
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