quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Peixes no aquário do FIT


“Os peixinhos não estão na minha cabeça, doutor. Estão em toda em toda parte”.

E então eu fechei minha participação no FIT com chave de ouro. Peixes foi o último espetáculo que vi, no Teatro Raul Belém Machado, lá no Alípio de Melo e não me decepcionou. Já falei aqui de certa implicância minha com espetáculos engajados, que tentam falar abertamente de política e de questões sociais. Tenho algumas dificuldades com a produção local quando tocam nesse ponto. Sou um amante da metáfora e na maioria das vezes vejo o discurso se sobrepondo a encenação e gerando um espetáculo fraco teatralmente falando. Acho as vezes que a arte tem que mostrar não mostrando, dizer não dizendo ou pelo menos não dizendo diretamente. Mas confesso que essa edição do FIT me fez ver as coisas por um outro ângulo e todos os espetáculos que vi me trouxeram algo de positivo tanto no nível do discurso quanto no da encenação. Há também uma máxima que diz que a beleza está na simplicidade. A doçura de um sorriso de criança pode encerrar tanta ou mais beleza que as pinturas da Capela Sistina. 

Difícil conciliar isso com minha fé na metáfora? Nem tanto. A arte é também irmã do espanto, tal como a religião e a filosofia. Não é que eu não fique espantado com a beleza barroca de uma igreja de Ouro Preto ou de Salvador, por exemplo, ou com um espetáculo de Gabriel Vilela dos velhos tempos. Claro que me espanto. Me espanto e me embriago (a embriaguez também é prima irmã da arte). Mas me espanta também a simplicidade de um espetáculo que não tem muita coisa em cena além de uma mesa, duas cadeiras, um ator convidado da plateia para fazer a função de médico ouvinte e de uma atriz. O corpo e a voz de uma atriz a preencher com maestria todo o palco. O corpo, a voz, a inteligência e o carisma de uma atriz... Uma ATRIZ como Ana Régis no palco. Uma atriz que diz um texto poderoso de sua própria autoria. Um texto onde costura três histórias de abuso e violência contra mulheres.

E o espetáculo nasceu quase que por acaso. Ana começou a pesquisar a questão da violência doméstica por outro motivo e depois se viu com um material que poderia dar um espetáculo. Para nossa felicidade ela abraçou a ideia e nos deu Peixes, uma pérola para encerrar um belo festival.E Ana cumpre também uma função essencial na arte de nosso tempo. Ela dá voz aos que não tem voz. Sua personagem, Cláudia, é uma professora que está em um manicômio judiciário para onde foi parar depois de ter esfaqueado o marido. Em aproximadamente uma hora ela nos dá um recado que toca lá no fundo. A violência doméstica está mais presente em nossa vida do que imaginamos. Ela pode estar ali na esquina, na porta ao lado, dentro de nossas próprias casas. Ela se manifesta de diversas maneiras, em diversas fases da vida.  

A personagem Cláudia nos mostra isso. A violência está nas tentativas de abuso por parte de um tio na infância, os peixinhos que beliscavam seu corpo quando ela estava na água com ele, a tentativa de penetração de sua vagina pueril. Mas está também no silêncio e na conivência dos adultos que deveriam proteger a criança incapaz ou no discurso cotidiano de um marido incapaz de ter palavras melhores para dizer a uma esposa do que "Porca, gorda, burra, você já viu homem dar aulas para crianças? Isso é coisa pra mulher". Quantas notícias como essa já não ouvimos? É só abrir os jornais e não só os da imprensa popular.  Ana Régis constrói uma bela caracterização. Seu corpo é o corpo de uma mulher ainda em estado de choque não só pelo que fez, mas pelo que lembra que viveu. Um estado de choque constante e que se manifesta na forma como ela manipula também seu olhar,  sua voz, na forma como caminha nervosa e meio sem rumo pelo palco ou como encadeia ações simples como, por exemplo, por duas vezes, vai até a mesa para beber água e fica olhando dentro do copo “para ver se tem bicho”. Familiar? Quantas vezes já não ouvimos isso? 

Uma fala ouvida na cozinha de nossa casa e que, no entanto, nos revela tanta coisa. Como também sua fala que encerra o espetáculo. Mais ou menos assim: “o senhor está enganado, doutor. Os peixinhos não estão dentro de minha cabeça. Estão em toda parte”. A violência contra a mulher não pode ser naturalizada como muita gente satisfeita com o status quo gostaria que fosse. É preciso falar e denunciar. E essa fala nos toca e como toca. Na apresentação do último domingo uma moça se levantou lá pela metade do espetáculo e mal deu conta de fechar a porta do teatro ao sair, de tão transtornada que estava.E por coincidência, para nos lembrar que as palavras ditas no espetáculo não foram vãs, na segunda feira entro no site do jornal “O Tempo” e a matéria de capa era exatamente sobre a violência contra a mulher. Quase 200 assassinatos em Minas até o mês de setembro. Para cada ação na Justiça por crime de trânsito, sete outras ações por crimes contra as mulheres.

Com Peixes, Ana Régis ganhou os prêmios Copasa/Sinpar/2018 nas categorias de melhor atriz e melhor texto inédito, além de ter concorrido ao prêmio de melhor espetáculo adulto. Premiação mais que merecida.

Um espetáculo que deve ser visto por todo mundo, que deve ser mostrado em todos os cantos da cidade, do estado, do país. Vida longa à Peixes.


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