terça-feira, 25 de setembro de 2018

FIT EXPERIÊNCIAS


Eve. 


No FIT passado não consegui ver Jo Clifford. No dia em que fui ver Jesus, Rainha do Céu, ela passou mal poucos minutos depois de iniciado o espetáculo. Ela voltou e fui vê-la de novo. Ao chegar ao teatro um inusitado atraso de uma hora para começar o espetáculo me fez temer novamente pela saúde da atriz. Mas não.
  
Pois é, o que é o teatro? Há muita gente se perguntando, há muita gente tentando responder e afinal encontrar a resposta é talvez matar a nossa própria motivação para continuar seguindo adiante. Jo Clifford nos dá uma pérola do que ela entende por teatro. Um espetáculo simples, ela quase o tempo todo sentada, imagens de arquivo pontuadas por uma bela música e ela ali, nos fazendo cúmplices de sua vida, nos trazendo para junto dela com sua história. Uma história que poderia ser de qualquer um. Simples assim. Sem ressentimentos, sem raiva. Ela soube desde cedo que era mulher mesmo sendo homem. Sofreu por conta disso, mas também riu, amou, se casou, teve filhas, netos  e 55 anos de travessia para chegar onde ela sempre soube que esteve. Uma lição de vida. 

Um espetáculo que esbanja humanismo. Lindo. Saí engasgado.Aliás não só eu. Vi muita gente com os olhos vermelhos no final. Meus amigos Alex e Jonathan que estavam comigo também saíram assim como eu: engasgado. A arte serve para isso mesmo. E a própria Jo Clifford nos diz isso no programa do espetáculo. Mais ou menos assim: "lá pelos meus 40 anos apareceu o filme "Traídos pelo Desejo" então, pela primeira vez em minha vida eu vi uma personagem trans sendo feita por uma atriz trans e retratada como uma pessoa que vale a pena amar." Um filme mudou a vida de Jo como seus espetáculos devem mudar a vida de muita gente. Eis a grande força da arte. Simples assim.

E ainda tive o prazer de tietá-la quando ela apareceu para jantar na Cantina do Lucas. 
Jo Clifford merece.

Da Escócia para Portugal


Libertação, produção de André Amálio/Hotel Europa. Estamos aqui diante de um autêntico exemplo do teatro documental. Não há personagens, há os atores que evocam suas memórias, suas histórias, seus corpos para encarnar passos marcantes do processo de descolonização da África portuguesa. Os três atores que estão em cena são frutos desse passado, dessas memórias. O pai de André, o proponente do projeto, foi policial em Moçambique. Os pais de Carla são de Cabo Verde e os de Ricardo da Guiné Bissau. Os três encarnam diversos personagens do longo e doloroso processo de independência das colônias portuguesas na África. Uma grande e envolvente aula de história. Um espetáculo que não tem medo de ser didático e que nos aponta para coisas fundamentais. Primeiro é que a história tem que ser remexida e contada por outros pontos de vista. Lembrar para não esquecer. 

Segundo que é necessário denunciar os crimes cometidos pela civilização europeia contra a África, crimes que não foram julgados e cujos criminosos escaparam ilesos. O último ditador português, Marcelo Caetano, fugiu para o Brasil depois de ter sido derrubado pela Revolução dos Cravos. E o Brasil dos ditadores militares o aceitou de bom grado. Uma lição para quem acha que o Brasil não teve ditadura e que os negros vieram para o Brasil como escravos única e exclusivamente pelas mãos de outros negros que os vendiam na África. Sei que há pessoas que não gostaram, que o acharam pouco teatral e muito discursivo. Sim, pode ser. O espetáculo tem mesmo um ar de defesa de tese. Mas é uma defesa de tese feita sem concessões, sem subterfúgios. Eles estão ali para isso e mostram o que pensam com coragem.

De Portugal para Ruanda


Unwanted da Compagnie Kadidi, da França/Ruanda é sem dúvida um soco no estômago.

Uma amiga que me acompanhou me disse mais tarde que não saiu com pouco mais de quinze minutos em consideração a mim. Marília, minha amiga, é psicóloga há quase trinta anos. Ouvir problemas de centenas de pacientes homens e mulheres não é problema para ela, mas porque com pouco mais de quinze minutos ela se sentiu afogada por tudo aquilo mostrado no palco? Muito real e muito próximo. Em tradução literal Unwanted  significa “não procurado, indesejado”. O que é indesejado? Acostumados ao mar de insanidades, bobagens e fake News divulgados pelas redes sociais nos esquecemos dos crimes que acontecem ali, na esquina mesmo de nossa casa. No caso a esquina de nossa casa é a África e mais precisamente Ruanda. Encravado ali entre Uganda, o Congo e o Burundi, esse pequeno país da África central foi palco de um dos mais terríveis genocídios do século passado. As disputas tribais entre hutus e tutsis levaram ao massacre de mais de 800 mil pessoas em cem dias. Mas quem se importa? 

No mundo de hoje um massacre é apenas mais uma estatística para ser negada anos depois por políticos sem escrúpulos e aceita por eleitores com preguiça de pensar. Odiar o outro é sempre mais fácil. Jogar em suas costas as culpas pelos males do mundo sempre foi mais cômodo. Assim é a história. Essa é a humanidade. E é por isso que trabalhos como Unwanted causam polêmica e incômodo ao ponto de algumas pessoas se levantarem e saírem no meio da apresentação. Talvez habituados a uma arte mais digestiva, que não nos oferece riscos, nos esquecemos que a função da verdadeira arte é colocar diante de nós um espelho e o problema é que não gostamos de nos ver refletidos lá. E é isso que a Compagnie Kadidi faz com maestria. 

Em cena, duas artistas, atrizes, cantores, performers. Não estão nos contanto uma história. Não há linearidade narrativa. Através do canto e do corpo tendo ao fundo narrativas de mulheres estupradas durante os dias de genocídio, o drama das mulheres de Ruanda nos chega pelo sensorial. São sons e imagens, gestos quebrados e quedas e cartazes rasgados e música e canto enquanto ouvimos o implacável depoimento das vítimas, três, quatro, cinco vozes que falam por todas as outras. As milhares de outras. E o que dizer dos indesejados filhos nascidos de tal violência, os unwanted do título? Ao final a dura lembrança do que acontece hoje, debaixo de nossos narizes, com a Síria e o depoimento de uma das vítimas que depois de tudo ainda é capaz de rir, o que significa que ainda é capaz de perdoar, de seguir em frente. O espetáculo foi aplaudido ininterruptamente por quase dez minutos. Golaço do FIT.

Mas muito do incomodo provocado por Unwanted talvez tenha se dado em função do alerta que desperta em corações apreensivos com o destino do país. Numa eleição marcada pela ilegalidade (afinal o que seria o candidato favorito é, queiramos ou não um preso político) e em que a principal estrela do pleito é um candidato admirador das trevas, assistir a Unwanted talvez tenha nos trazido um triste prenúncio. O prenúncio de que se não agirmos, se não lutarmos com todas as armas que temos contra o reinado de ódio destilado nesses anos todos, Ruanda será também aqui.

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