quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Peixes no aquário do FIT


“Os peixinhos não estão na minha cabeça, doutor. Estão em toda em toda parte”.

E então eu fechei minha participação no FIT com chave de ouro. Peixes foi o último espetáculo que vi, no Teatro Raul Belém Machado, lá no Alípio de Melo e não me decepcionou. Já falei aqui de certa implicância minha com espetáculos engajados, que tentam falar abertamente de política e de questões sociais. Tenho algumas dificuldades com a produção local quando tocam nesse ponto. Sou um amante da metáfora e na maioria das vezes vejo o discurso se sobrepondo a encenação e gerando um espetáculo fraco teatralmente falando. Acho as vezes que a arte tem que mostrar não mostrando, dizer não dizendo ou pelo menos não dizendo diretamente. Mas confesso que essa edição do FIT me fez ver as coisas por um outro ângulo e todos os espetáculos que vi me trouxeram algo de positivo tanto no nível do discurso quanto no da encenação. Há também uma máxima que diz que a beleza está na simplicidade. A doçura de um sorriso de criança pode encerrar tanta ou mais beleza que as pinturas da Capela Sistina. 

Difícil conciliar isso com minha fé na metáfora? Nem tanto. A arte é também irmã do espanto, tal como a religião e a filosofia. Não é que eu não fique espantado com a beleza barroca de uma igreja de Ouro Preto ou de Salvador, por exemplo, ou com um espetáculo de Gabriel Vilela dos velhos tempos. Claro que me espanto. Me espanto e me embriago (a embriaguez também é prima irmã da arte). Mas me espanta também a simplicidade de um espetáculo que não tem muita coisa em cena além de uma mesa, duas cadeiras, um ator convidado da plateia para fazer a função de médico ouvinte e de uma atriz. O corpo e a voz de uma atriz a preencher com maestria todo o palco. O corpo, a voz, a inteligência e o carisma de uma atriz... Uma ATRIZ como Ana Régis no palco. Uma atriz que diz um texto poderoso de sua própria autoria. Um texto onde costura três histórias de abuso e violência contra mulheres.

E o espetáculo nasceu quase que por acaso. Ana começou a pesquisar a questão da violência doméstica por outro motivo e depois se viu com um material que poderia dar um espetáculo. Para nossa felicidade ela abraçou a ideia e nos deu Peixes, uma pérola para encerrar um belo festival.E Ana cumpre também uma função essencial na arte de nosso tempo. Ela dá voz aos que não tem voz. Sua personagem, Cláudia, é uma professora que está em um manicômio judiciário para onde foi parar depois de ter esfaqueado o marido. Em aproximadamente uma hora ela nos dá um recado que toca lá no fundo. A violência doméstica está mais presente em nossa vida do que imaginamos. Ela pode estar ali na esquina, na porta ao lado, dentro de nossas próprias casas. Ela se manifesta de diversas maneiras, em diversas fases da vida.  

A personagem Cláudia nos mostra isso. A violência está nas tentativas de abuso por parte de um tio na infância, os peixinhos que beliscavam seu corpo quando ela estava na água com ele, a tentativa de penetração de sua vagina pueril. Mas está também no silêncio e na conivência dos adultos que deveriam proteger a criança incapaz ou no discurso cotidiano de um marido incapaz de ter palavras melhores para dizer a uma esposa do que "Porca, gorda, burra, você já viu homem dar aulas para crianças? Isso é coisa pra mulher". Quantas notícias como essa já não ouvimos? É só abrir os jornais e não só os da imprensa popular.  Ana Régis constrói uma bela caracterização. Seu corpo é o corpo de uma mulher ainda em estado de choque não só pelo que fez, mas pelo que lembra que viveu. Um estado de choque constante e que se manifesta na forma como ela manipula também seu olhar,  sua voz, na forma como caminha nervosa e meio sem rumo pelo palco ou como encadeia ações simples como, por exemplo, por duas vezes, vai até a mesa para beber água e fica olhando dentro do copo “para ver se tem bicho”. Familiar? Quantas vezes já não ouvimos isso? 

Uma fala ouvida na cozinha de nossa casa e que, no entanto, nos revela tanta coisa. Como também sua fala que encerra o espetáculo. Mais ou menos assim: “o senhor está enganado, doutor. Os peixinhos não estão dentro de minha cabeça. Estão em toda parte”. A violência contra a mulher não pode ser naturalizada como muita gente satisfeita com o status quo gostaria que fosse. É preciso falar e denunciar. E essa fala nos toca e como toca. Na apresentação do último domingo uma moça se levantou lá pela metade do espetáculo e mal deu conta de fechar a porta do teatro ao sair, de tão transtornada que estava.E por coincidência, para nos lembrar que as palavras ditas no espetáculo não foram vãs, na segunda feira entro no site do jornal “O Tempo” e a matéria de capa era exatamente sobre a violência contra a mulher. Quase 200 assassinatos em Minas até o mês de setembro. Para cada ação na Justiça por crime de trânsito, sete outras ações por crimes contra as mulheres.

Com Peixes, Ana Régis ganhou os prêmios Copasa/Sinpar/2018 nas categorias de melhor atriz e melhor texto inédito, além de ter concorrido ao prêmio de melhor espetáculo adulto. Premiação mais que merecida.

Um espetáculo que deve ser visto por todo mundo, que deve ser mostrado em todos os cantos da cidade, do estado, do país. Vida longa à Peixes.


terça-feira, 25 de setembro de 2018

FIT EXPERIÊNCIAS


Eve. 


No FIT passado não consegui ver Jo Clifford. No dia em que fui ver Jesus, Rainha do Céu, ela passou mal poucos minutos depois de iniciado o espetáculo. Ela voltou e fui vê-la de novo. Ao chegar ao teatro um inusitado atraso de uma hora para começar o espetáculo me fez temer novamente pela saúde da atriz. Mas não.
  
Pois é, o que é o teatro? Há muita gente se perguntando, há muita gente tentando responder e afinal encontrar a resposta é talvez matar a nossa própria motivação para continuar seguindo adiante. Jo Clifford nos dá uma pérola do que ela entende por teatro. Um espetáculo simples, ela quase o tempo todo sentada, imagens de arquivo pontuadas por uma bela música e ela ali, nos fazendo cúmplices de sua vida, nos trazendo para junto dela com sua história. Uma história que poderia ser de qualquer um. Simples assim. Sem ressentimentos, sem raiva. Ela soube desde cedo que era mulher mesmo sendo homem. Sofreu por conta disso, mas também riu, amou, se casou, teve filhas, netos  e 55 anos de travessia para chegar onde ela sempre soube que esteve. Uma lição de vida. 

Um espetáculo que esbanja humanismo. Lindo. Saí engasgado.Aliás não só eu. Vi muita gente com os olhos vermelhos no final. Meus amigos Alex e Jonathan que estavam comigo também saíram assim como eu: engasgado. A arte serve para isso mesmo. E a própria Jo Clifford nos diz isso no programa do espetáculo. Mais ou menos assim: "lá pelos meus 40 anos apareceu o filme "Traídos pelo Desejo" então, pela primeira vez em minha vida eu vi uma personagem trans sendo feita por uma atriz trans e retratada como uma pessoa que vale a pena amar." Um filme mudou a vida de Jo como seus espetáculos devem mudar a vida de muita gente. Eis a grande força da arte. Simples assim.

E ainda tive o prazer de tietá-la quando ela apareceu para jantar na Cantina do Lucas. 
Jo Clifford merece.

Da Escócia para Portugal


Libertação, produção de André Amálio/Hotel Europa. Estamos aqui diante de um autêntico exemplo do teatro documental. Não há personagens, há os atores que evocam suas memórias, suas histórias, seus corpos para encarnar passos marcantes do processo de descolonização da África portuguesa. Os três atores que estão em cena são frutos desse passado, dessas memórias. O pai de André, o proponente do projeto, foi policial em Moçambique. Os pais de Carla são de Cabo Verde e os de Ricardo da Guiné Bissau. Os três encarnam diversos personagens do longo e doloroso processo de independência das colônias portuguesas na África. Uma grande e envolvente aula de história. Um espetáculo que não tem medo de ser didático e que nos aponta para coisas fundamentais. Primeiro é que a história tem que ser remexida e contada por outros pontos de vista. Lembrar para não esquecer. 

Segundo que é necessário denunciar os crimes cometidos pela civilização europeia contra a África, crimes que não foram julgados e cujos criminosos escaparam ilesos. O último ditador português, Marcelo Caetano, fugiu para o Brasil depois de ter sido derrubado pela Revolução dos Cravos. E o Brasil dos ditadores militares o aceitou de bom grado. Uma lição para quem acha que o Brasil não teve ditadura e que os negros vieram para o Brasil como escravos única e exclusivamente pelas mãos de outros negros que os vendiam na África. Sei que há pessoas que não gostaram, que o acharam pouco teatral e muito discursivo. Sim, pode ser. O espetáculo tem mesmo um ar de defesa de tese. Mas é uma defesa de tese feita sem concessões, sem subterfúgios. Eles estão ali para isso e mostram o que pensam com coragem.

De Portugal para Ruanda


Unwanted da Compagnie Kadidi, da França/Ruanda é sem dúvida um soco no estômago.

Uma amiga que me acompanhou me disse mais tarde que não saiu com pouco mais de quinze minutos em consideração a mim. Marília, minha amiga, é psicóloga há quase trinta anos. Ouvir problemas de centenas de pacientes homens e mulheres não é problema para ela, mas porque com pouco mais de quinze minutos ela se sentiu afogada por tudo aquilo mostrado no palco? Muito real e muito próximo. Em tradução literal Unwanted  significa “não procurado, indesejado”. O que é indesejado? Acostumados ao mar de insanidades, bobagens e fake News divulgados pelas redes sociais nos esquecemos dos crimes que acontecem ali, na esquina mesmo de nossa casa. No caso a esquina de nossa casa é a África e mais precisamente Ruanda. Encravado ali entre Uganda, o Congo e o Burundi, esse pequeno país da África central foi palco de um dos mais terríveis genocídios do século passado. As disputas tribais entre hutus e tutsis levaram ao massacre de mais de 800 mil pessoas em cem dias. Mas quem se importa? 

No mundo de hoje um massacre é apenas mais uma estatística para ser negada anos depois por políticos sem escrúpulos e aceita por eleitores com preguiça de pensar. Odiar o outro é sempre mais fácil. Jogar em suas costas as culpas pelos males do mundo sempre foi mais cômodo. Assim é a história. Essa é a humanidade. E é por isso que trabalhos como Unwanted causam polêmica e incômodo ao ponto de algumas pessoas se levantarem e saírem no meio da apresentação. Talvez habituados a uma arte mais digestiva, que não nos oferece riscos, nos esquecemos que a função da verdadeira arte é colocar diante de nós um espelho e o problema é que não gostamos de nos ver refletidos lá. E é isso que a Compagnie Kadidi faz com maestria. 

Em cena, duas artistas, atrizes, cantores, performers. Não estão nos contanto uma história. Não há linearidade narrativa. Através do canto e do corpo tendo ao fundo narrativas de mulheres estupradas durante os dias de genocídio, o drama das mulheres de Ruanda nos chega pelo sensorial. São sons e imagens, gestos quebrados e quedas e cartazes rasgados e música e canto enquanto ouvimos o implacável depoimento das vítimas, três, quatro, cinco vozes que falam por todas as outras. As milhares de outras. E o que dizer dos indesejados filhos nascidos de tal violência, os unwanted do título? Ao final a dura lembrança do que acontece hoje, debaixo de nossos narizes, com a Síria e o depoimento de uma das vítimas que depois de tudo ainda é capaz de rir, o que significa que ainda é capaz de perdoar, de seguir em frente. O espetáculo foi aplaudido ininterruptamente por quase dez minutos. Golaço do FIT.

Mas muito do incomodo provocado por Unwanted talvez tenha se dado em função do alerta que desperta em corações apreensivos com o destino do país. Numa eleição marcada pela ilegalidade (afinal o que seria o candidato favorito é, queiramos ou não um preso político) e em que a principal estrela do pleito é um candidato admirador das trevas, assistir a Unwanted talvez tenha nos trazido um triste prenúncio. O prenúncio de que se não agirmos, se não lutarmos com todas as armas que temos contra o reinado de ódio destilado nesses anos todos, Ruanda será também aqui.

domingo, 23 de setembro de 2018

O FIT não decepcionou


Escrevo estas linhas no penúltimo dia do Festival de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte. Para mim ainda falta assistir mais um espetáculo, Peixes, que verei hoje à tarde.

Até aqui assisti a sete espetáculos. Esse ano não fui capaz de fazer a maratona que fazia em edições passadas. Problemas de agenda e ânimo mesmo. Mas confesso que as sete produções que vi foram satisfatórias. Saí emocionado de umas, engasgado de outras, pensando em todas. Quando foi anunciada a proposta curatorial fiquei um pouco apreensivo, temeroso até. Pensei que o FIT ia ficar restrito a um pequeno grupo, espetáculos para guetos. Especialmente quando foi divulgada a lista dos espetáculos locais. Apreensão que aumentou depois da decepcionante abertura. Mas o que vi depois mudou meu ponto de vista. Vi espetáculos fortes no radicalismo de sua proposta e discurso, espetáculos para pessoas que pensam e que desejam um mundo melhor, mais humano. Humanismo. Esta foi para mim a tônica do festival. Empatia pelo sofrimento humano, pelos dilemas de nossa existência em um mundo cada vez mais patético.

Depois das boas impressões causadas por Black Off e A Invenção do Nordeste, vi por indicação de meu amigo Guto Muniz ao simpático Simon, El Topo, do Teatro de La Plaza, do Peru. Um espetáculo de bonecos destinado ao público infantil (nem tanto) em que a toupeira Simon tem problemas com as pressões sociais. Ele é uma toupeira que tem dificuldades em assimilar coisas que as toupeiras fazem como caçar minhocas. A falta de jeito com a coisa faz com que ele se sinta repudiado pelo grupo que o considera um “veadinho”. Situação muito corriqueira na vida de milhões de pessoas. Eu mesmo tive muitas dificuldades na minha infância por não gostar de jogar futebol, o que na economia sexual da criança brasileira de minha época era sinal de pouca masculinidade. Incrível eu gostar hoje de futebol como torcedor e ser fanático pelo Galo...enfim. Simon, El Topo é um espetáculo que fala desse dilema que desemboca na solidão da personagem principal. 

Na sua solidão ele encontra o amor de outra toupeira macho. Mas isso é dito de uma forma lúdica (afinal, estamos falando para crianças) e episódica. A relação não se desenvolve e Raul, a toupeira amiga de Simon, só aparece na cena final da festa de aniversário como mais um convidado. Pronto. Está dado o recado. O único senão é com relação a dramaturgia. Penso que a ela poderia ter sido mais ousada. No decorrer da história há uma tempestade que inunda tudo e Simon aparece como o salvador de seu grupo conduzindo-os para uma toca mais segura, a toca onde ele se escondia quando estava infeliz. Fico pensando... É necessário ele se transformar em herói para ser aceito pelo grupo? Como não sei qual é a situação em que o espetáculo foi concebido (sei nada sobre a questão sexual no Peru), não posso julgar, mas fiquei esperando um pouquinho mais da história.

Donde Viven Los Bárbaros da Compañia Bonobo do Chile foi outra boa surpresa. Chilenos e argentinos sempre trazem bons espetáculo para o FIT. “Viagem ao Centro da Terra”, do La Tropa e “Maratona”, do Sombrero Verde, foram sem dúvida dois grandes momentos da história do FIT. Donde Viven Los Bárbaros não deixa por menos. Espetáculo dividido em duas partes (para mim poderia ter sido só uma, mas isso é um desejo meu), na primeira, num passado clássico (Grécia), um homem é mandado para os limites da civilização, para a terra dos bárbaros, mas ele não encontra as bestas que julgava encontrar lá. Os bárbaros, afinal são iguais a nós. A montagem dá um salto e aterrissa no Chile dos tempos atuais, para uma reunião entre três primos. Num texto que lembra as melhores obras de Eric Emmanuel Schimit, a progressão do enredo nos traz inusitadas surpresas. 

Os atos impensados das personagens os levam a situações limite onde fraquezas, medos, anseios e ressentimentos são expostos. Ao final, o que sobra é uma inversão da posição sartreana de que o “inferno são os outros”. Não. O inferno sou eu mesmo. Os bárbaros não moram além da fronteira, mas dentro de mim. Uma bela metáfora para o mundo atual. Além dessa preciosidade de texto o que salta aos olhos de nossos irmãos de continente é o brilho das interpretações. Sou um grande admirador dos argentinos. Gosto de seu rigor, de sua precisão. Os chilenos não ficam atrás. A interpretação precisa. Texto bem falado, presença cênica, nenhum um gesto a mais ou a menos. Muito bom.

Hoje fico por aqui. Postarei os outros comentários nos próximos dias.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

FIT 2


Black off e A Invenção do Nordeste foram os espetáculos do FIT que vi até agora e achei um acerto da curadoria.

Black off é um trabalho da artista Ntando Cele de Zimbábue que se apresenta com sua banda de suíços brancos, conforme a definição dada pela sua personagem Bianca White logo no começo do espetáculo. Um espetáculo incômodo. Acostumados a rir do black face que até bem pouco tempo era naturalizado como expressão de pilhéria, é difícil para nós brancos não sentirmos um incômodo quando a coisa se volta contra o conforto de nossa “branquitude”. Aqui temos uma branca maluca, uma White face, uma irmã “espiritual da Xuxa” a falar de um branqueamento total do mundo, de expulsão de nossa negritude interior,absurdos ditos de uma forma leve e espirituosa que nos fazem rir...De nervoso. 
O espetáculo é dividido em duas partes. A primeira é uma espécie de stand-up em que Ntando Cele com muita graça e ironia nos faz provar um pouco do nosso próprio veneno, de nossa falsa consciência de que ser branco bastaria. 

E o veneno surte efeito quando vemos, no meio do espetáculo, uma senhora branca se levantar e sair resmungando. A primeira parte termina com a desconstrução de Bianca White. Sentada defronte ao espelho com uma câmera de vídeo a projetar seus gestos em uma tela, a atriz tira a maquiagem e nos mostra que por trás da caricatura há um ser humano, uma mulher negra que usou a máscara para denunciar os naturalizados preconceitos nossos de cada dia. Na segunda parte, Ntando vem de cara limpa e depois de uma breve cena em que ironiza os estereótipos da África exótica e selvagem, canta uma bela canção acompanhada pela banda enquanto o vídeo de uma performance em que ela aparece com o rosto todo amarrado por uma corda é mostrado. Uma cena linda. Para mim o espetáculo deveria acabar ali. A seguir, com outro figurino ela retorna e dá um pequeno show onde canta quatro músicas. Achei o final um pouco reiterativo. Ela canta muito bem, a banda é boa, as letras são de protesto, mas sobrou um pouco. A galera se levantou em êxtase. Ponto para o FIT.

O que é ser nordestino?

Existe um rótulo que nos colocam ao nascermos para nos identificar como mineiros, gaúchos, cariocas ou nordestinos?

Ser nordestino é o quê? Falar de um jeito diferente? Todos nós falamos diferente em cada região de Minas. É só viajar pelo estado. Fala-se de uma forma em Januária e de outra em Juiz de Fora. De um modo peculiar em Varginha e outro em BH. E não somos todos mineiros? O Grupo Carmin, do Rio Grande do Norte traz de forma divertida essa questão da identidade nordestina. Em cena dois atores que disputam o papel em um trabalho para a televisão (Globo) e um preparador de elenco. Eles irão disputar o papel do Padre Cícero e precisam mostrar a cor local. No trabalho de preparação que leva seis semanas eles discutem os vários aspectos do ser nordestino, a origem do rótulo que veio da imprensa do século XIX depois da grande seca de 1877. O trabalho diz muito sobre o que pensamos sobre nós mesmos e, para nós atores, diz muito sobre como encaramos os desafios que nos são colocados quando precisamos dizer algo sobre nós mesmos.
A questão da identidade, sempre atual, é trazida à tona num momento em que os próprios destinos da civilização no Brasil são colocados em cheque e, no meio de um bizarro processo eleitoral, a decisão sobre o futuro da sociedade brasileira pode ser decidida por um embate entre o norte e o sul/sudeste. Ainda sobre a identidade: nós somos o que pensamos que somos ou o que pensam que somos? É claro que no final um galã global é escolhido para o papel e os dois esforçados atores são convidados para papéis menores em outro trabalho. Um como porteiro em um edifício e outro como operário da construção civil, os papéis que a sociedade branca, letrada e classe média do sudeste/sul gosta de designar para os nordestinos (além do exotismo para turista). Com graça e humor o Grupo Carmin põe vários dedos na ferida de nossa consciência sulista, a começar pelo papel aniquilador de identidades assumido pelos meios de comunicação. Outro ponto para o FIT.

domingo, 16 de setembro de 2018

Atendendo a pedidos


Atendendo a pedidos não está no FIT, mas corajosamente está em temporada durante a realização do FIT. Estreou na Sala Júlio Mackenzie no Sesc Palladium no último dia 14 e depois se apresentará em três locais diferentes nas próximas três semanas.  Mas é um espetáculo que poderia perfeitamente compor a grade de programação do grande festival. Tanto pelo que ele fala quanto pela forma como fala.
O espetáculo é fruto da parceria entre o ator Robson Vieira e o diretor Lenine Martins. Há outras duas parcerias que garantem o bom resultado do espetáculo, Javier Galindo, na trilha musical e Denner Moisés que divide a iluminação junto com a dupla ator/diretor. O trabalho faz parte de um projeto maior do Grupo Teatro Invertido que já estreou outros dois solos.

Conheço Robson Vieira há mais de vinte anos e já trabalhamos juntos em três espetáculos: A Farsa da Boa Preguiça (pelo qual ganhou o Prêmio Usiminas/Sinparc de ator revelação), Tribobó City e Retrato Falado. Atendendo a Pedidos é seguramente um de seus melhores trabalhos. Fruto de uma investigação corporal e temática inteligente. Robson Vieira é um ator que sabe muito bem explorar as habilidades de seu corpo, mas seu trabalho vai muito além de uma mera exploração. Há espetáculos em que os atores exibem suas habilidades corporais sem que essa exibição traga necessariamente algo de significativo ao que estamos assistindo.  Não é o caso de Atendendo a Pedidos onde o ator coloca com verdade seu corpo a serviço da encenação, em que o trabalho da dramaturgia e da direção só ganham verdadeiro sentido quando conectado a presença do ator que os traduz.

O espetáculo é composto por cinco quadros que, segundo o ator, são apresentados de forma aleatória a cada apresentação de modo que um espetáculo nunca é igual ao outro. Na apresentação que vi fui capturado de imediato pelo quadro que fala sobre o acidente de Mariana. Esse acidente que continua como uma ferida aberta, não purgada pela nossa confusa sociedade. O quadro sobre a lama de Mariana me fez pensar no que é fazer teatro político hoje. Já havia manifestado essa minha questão com o próprio Robson em uma mesa de bar. Há muitos espetáculos que tentam ser políticos, trazer a discussão política para o palco. Acho importante, necessário, urgente. A questão é a forma. Como falar o que queremos falar. Há experiências recentes (premiadas até) que valorizam em excesso o discurso em detrimento da forma. O resultado é um espetáculo que parece muito mais uma aula ou um comício. Atendendo a Pedidos não cai nessa armadilha. O que diz é sério, mas também é engraçado. A reflexão não precisa ser sisuda.

Destaque também para a excelente trilha musical e para a luz. Não há cenário, mas objetos cênicos. O figurino é simples e muitas vezes o que vemos é o corpo nu do ator. Um corpo que não tem vergonha, não tem medo de dizer o que precisa ser dito.

Depois do Sesc Palladium o espetáculo será apresentado na Casa Circo Gamarra, na Gruta e por fim no Teatro de Bolso do Sesiminas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Fit


Acompanho o FIT desde a primeira edição. Ainda estava no Cefar, no último ano, quando BH foi premiada com a sua primeira edição. Sempre fui público fiel do festival que sempre defendi com unhas e dentes. Quando o falecido Lacerda quis acabar com ele estive na porta da Fundação Municipal de Cultura com outros artistas para protestar. Não ganhei os louros da briga. Já me disseram que tenho dificuldades com a inteligência emocional. Na verdade, tenho dificuldade com a política, com a politicagem, com o marketing. Enfim.
Como é um blog posso misturar lembranças e sentimentos às tentativas de reflexão que apresento a um possível leitor.

Muito difícil esquecer a abertura do primeiro FIT. Foi o primeiro festival internacional de teatro que vimos na cidade. Era uma tarde de sábado e estávamos na entrada do Parque Municipal, ali na Afonso Pena e de repente artistas com roupas e corpos pintados dependurados nas árvores começaram a vir para o chão e o que se seguiu foi aquela orgia de seguir o grupo francês Generique Vapeur (desculpem a falta dos acentos nas palavras francesas). Foi uma abertura tão marcante que três anos depois ela foi repetida no FIT do centenário da cidade. O impacto de um “espetáculo” tão simples foi a liberdade que nos proporcionou de seguir como loucos aquele grupo (ainda não tínhamos o carnaval de blocos e trios elétricos por aqui) e a felicidade de ver aqueles gringos loucos escalarem prédios e marquises resignificando espaços públicos para os quais dávamos pouca ou nenhuma importância. O Generique Vapeur envolveu a galera e eu nunca havia sentido aquele tipo de emoção em uma manifestação artística. Lembranças.
E evoco essas lembranças para falar do FIT de 2018 cuja abertura, decepcionante, foi feita ontem.

Eu entendo que o momento político nacional exige uma tomada de posição, um engajamento de todos os setores esclarecidos e por esclarecer da sociedade. Sei que os artistas tem um papel fundamental nessa empreitada e que há uma pressão muito forte por uma arte engajada. O problema do engajamento da arte é de o discurso político se sobrepor ao artístico o que no final das contas acaba diluindo um e outro. Ambos acabam perdendo a profundidade que se deseja.  Uma conversa antiga, mas que continua atual, cada vez mais atual. Não vou me estender aqui porque ainda não vi nenhum dos espetáculos programados. Espero voltar mais tarde.

Estava dizendo que entendo que o momento político demande uma tomada de posição. Entendo que há uma curadoria que foi escolhida através de uma seleção pública. Mas isso não me faz desculpá-la pelas escolhas. Estou falando ainda da abertura. Acostumados a ver uma abertura mais monumental, um evento que chamasse a atenção da cidade para o festival, achei meio incompreensível abandonar a icônica Praça da Estação pelo Parque Municipal. A praça, mais que qualquer outro lugar, é o espaço da convivência democrática. Pela Praça da Estação passam milhares de pessoas, carros e ônibus. Tudo bem que o povão (e não estou usando esse termo de forma pejorativa) talvez não se ligue muito no teatro, mas ao passar e ver que está acontecendo algo diferente na Praça ele é tocado. Nem que seja por pouco tempo. Isso para não dizer que a Praça da Estação e seu entorno já estão marcados no imaginário de lutas da cidade.  O deslocamento para o Parque Municipal me deu a impressão de se tratar de um clubinho. Um clubinho frequentado pelos artistas e por consumidores (e outros nem tanto) habituais de cultura.

Os shows de abertura. Não é que foram ruins. Nada disso. Não quero fazer esse tipo de juízo de valor. Mas penso que caberiam mais para eventos do próprio ponto de encontro (quando isso começou chamava-se Bar do FIT) do que propriamente para uma cerimônia de abertura. A batucada inicial com os artistas mascarados começou meio fria, com os artistas tentando provocar algum incômodo na plateia (não causou) e depois foi estabelecido um ritmo interessante e só. E essa não foi apenas a minha impressão. Várias pessoas que estavam presentes sentiram o mesmo. O.K, vão me dizer que a atual curadoria quis uma mudança de paradigmas. Tudo bem, podem me chamar de velho (e nem vi nada tão novo assim no que foi mostrado, a começar pela batucada), mas ainda prefiro o paradigma antigo.

No mais vou tentar ver o maior número possível de espetáculos e irei comentá-los neste blog.